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Limpeza

limpeza

Era um fim de tarde frio e com ventos malcheirosos soprando do lado leste de Ohio. O Emaranhado avançava vindo da Pensilvânia e já havia engolido Pitsburgo e Cleveland, ganhando força nas águas do lago Erie. Segundo cálculos dos pesquisadores, era questão de meses até que a vegetação mutante crescesse o suficiente para percorrer 130 km até os muros a leste da cidade.

Nosso trabalho era uma merda. Talvez o mais fudido dos empregos em que o sindicato do Martelo pode te enfiar. Eu me inscrevi para fazer a limpeza dentro da cidade, mas limpar os muros fora dela não estava nos meus planos. Como se já não bastasse ficar na mira daqueles chuveiros fedidos que parecem borrifar mijo e amônia o tempo todo, ainda temos que ser escoltados por soldados metidos a merda, que ficam rezando pra não aparecer nenhum saqueador dos Ermos ou uma besta do Emaranhado perdida por aí. Eu sei que eles têm medo. Ficam o tempo todo cochichando sobre a guarnição que foi destroçada semana passada por um javali mutante. Covardes.

Já perdi bem mais que amigos na vida. Além de todos aqueles que se foram durante a pandemia ou nos ataques nucleares, só havia me restado o Spencer. Ele sim era um cara ponta firme. Foi casado com a minha irmã durante bons anos e, só por aturar aquela bruxa, o cara já merecia um prêmio. Ele fazia o corre aqui comigo, limpando as cagadas do lado de fora dos muros. Ultimamente um grupo de revolucionários andou pichando pontos estratégicos para que gangues de saqueadores fizessem ataques coordenados em algumas partes, ou tentassem abrir buracos que dessem acesso à cidade. Quem limpava a bagunça era a gente, esfregando tinta das paredes ou retirando resto de corpos do chão.

Spencer desapareceu há exatos 20 dias. Enviaram-no sozinho pra lavar a cagada de um degenerado qualquer que havia matado um cervo enorme e espalhado suas entranhas pela superfície, pintando o muro de vermelho. Depois disso Spencer nunca mais foi visto. Já cansamos de tirar pichações dos muros, mas aquilo, era uma puta obra de arte sinistra que um maluco qualquer resolveu pintar. Ou então um protesto nojento contra o governo do Domo. Sei lá. Depois disso apareceram mais três pinturas parecidas, mas dessa vez feitas com corpos humanos. Dois foram de soldados e um, de um comerciante que vagava vendendo bugigangas nos Ermos. Ninguém dava a mínima pro velho, mas eu sim, porque tive que limpar os restos fedidos dele. Não sou pago pra essa merda. Sindicato do caralho.

Eu estava pensando em sair. Pedir as contas, sei lá. Depois do sumiço do Spencer e com tanta merda acontecendo do lado de fora, eu tive medo de ter que limpar as entranhas dele espalhadas junto com o macacão amarelo em um muro qualquer. Seria fudido ter essa como última lembrança da última pessoa com quem eu me importava. Mas se eu me desvinculasse do sindicato eu não conseguiria outro emprego, e teria que pedir esmola ou tentar a vida no além-muro, o que me traria talvez ao mesmo problema do Spencer. Quem sabe algum dia, meu rabo estaria pintando de vermelho um dos muros da cidade. Então, resolvi ficar.

Apesar de não haver corpo que comprovasse sua morte, já não havia mais esperança de encontrar o Spencer. Ninguém sobrevive tanto tempo nos Ermos sem pertencer a alguma gangue ou sem se abrigar em alguma Clareira. A Clareira mais próxima daqui fica a mais de 200 km e o povo da aldeia não costuma ser muito receptivo. Sem contar que o Spencer não conseguiria atravessar o Emaranhado sozinho e chegar numa Clareira. Sem chances. Ele era bundão demais pra isso.

Depois de 15 dias consegui uma consulta no Setor de Sanidade do sindicato e eles assinaram a minha transferência. Uma vaga para varrer calçadas no centro da cidade, mas o trampo só começava em uma semana. Antes disso tinha um último trabalho de limpeza nos muros para fazer e adivinha: Fomos eu e um assistente mandados para limpar restos humanos no muro novamente, e um soldado para dirigir o carro. Mas era a última vez e o sabor da despedida deixava tudo mais suave.

Vestimos o macacão amarelo e seguimos para o veículo. O soldado nos esperava com o motor ligado e nossa partida foi bem rápida. Passados os enormes portões de Ohio, nos encaminhamos para o setor leste da muralha, onde o incidente havia acontecido. Chegando lá, para o meu alívio a minha despedida continuava suave, pois o uniforme do infeliz que foi massacrado contra o muro era preto. Um dos soldados fora a bola da vez e as partes retorcidas e esfarrapadas do seu corpo ainda estavam frescas, grudadas no muro e espalhadas pelo chão. Era como se um ônibus tivesse socado o cara contra o muro e se movimentado de um lado para o outro, esfregando. Ou como quando a gente pisa numa barata e esfrega o pé para limpar a sola do sapato e garantir que o inseto não sobreviva.

O capacete vazio do soldado estava bem próximo dos meus pés, com aquelas lentes vermelhas me olhando e refletindo o brilho da lua. Já o soldado que nos trouxe até o local, se movimentava lentamente para sair do veículo, tremendo como se fosse ter uma convulsão e olhando para a direção oposta dos muros, para atrás de mim, onde os faróis do veículo não conseguiam alcançar por estarem focados sobre a pintura nojenta. Pelo reflexo das lentes do capacete, eu comecei a ver a enorme figura surgindo pelas minhas costas.

Busquei visualizar o assistente que não estava mais ali. Não sabia se foi esperto o suficiente para fugir e se esconder ou se foi atacado em meio à escuridão. Quanto ao monstro, não deu tempo de olhar para trás antes de levar uma pancada dele, que me deixou inconsciente. Do chão enquanto minha visão enturvecia, eu podia ver a criatura saltar sobre o soldado e dividir seu corpo em dois com um simples movimento. Era uma massa retorcida horrenda que só lembrava um ser humano por ter dois braços e duas pernas. Seu macacão amarelo, todo esfarrapado, dava uma pista de quem um dia teria sido esta criatura antes de ser tocada pelas cepas vermelhas do Emaranhado. 

Jamais pude voltar a me locomover normalmente. A lesão na coluna me fez perder o movimento das pernas e um mero limpador de calçadas não tem grana para pagar uma regeneração celular. Quanto à criatura, ela ainda está por aí e o fato de ter me deixado sobreviver é uma prova de que, talvez, ainda haja algo de humano nele. Por enquanto.

 


Oddcell é um universo de RPG que aborda um planeta Terra em 2048, devastado por uma guerra nuclear sob resquícios de um vírus que transformou pessoas comuns em seres dotados de poderes inimagináveis. Acompanhe o site e fique por dentro das novidades. oddcell.com.br

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