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Na esquina da décima primeira com a quarta houve um estrondo, seguido de estilhaços de vidro banhando o asfalto. Coletor caiu como um meteoro em cima de um carro, fazendo o veículo afundar até o chão estourando os quatro pneus. Em seguida um abrupto exageradamente forte caiu no asfalto, com músculos inchados e expostos que absorveram o impacto da queda. O monstro se levantou do chão quente como se quatorze andares não passassem de um leve tombo de gangorra. 

O combate inesperado reverberou pela floresta mutante, fazendo-a tremer. As copas das árvores se contorceram, expulsando aves exóticas e pequenos animais abruptos de seus esconderijos improvisados, enquanto a cidade devorada pelo Emaranhado, lentamente se silenciava.

Em meio à poeira, uma porta do carro foi lançada a metros de distância e atingiu uma casa com um ribombar metálico. Pela lateral do veículo, Coletor se esgueirou entre os escombros e saiu com o corpo arregaçado de feridas profundas causadas pelas ferragens. Seu uniforme laranja não passava de farrapos pendurados com pele e sangue. Ele olhou para o abrupto e sorriu, com a metade do rosto esmagada e banhada em um vermelho viscoso. Em seguida voltou-se para o que restou do retrovisor do carro e examinou seus ferimentos. Pôs o maxilar quebrado no lugar, fazendo um clique duro. Empurrou o olho direito para dentro da órbita usando o dedo indicador. Por fim, ajeitou o cabelo com as mãos, alisando o que restou no couro cabeludo. Deu pra ouvir os passos rápidos do abrupto correndo na sua direção, como o estouro de uma manada de rinocerontes que faziam o chão tremer. Com os impactos, o retrovisor em frangalhos terminou por cair, interrompendo o momento de relativa tranquilidade. Coletor virou-se para olhar o monstro.

Tarde demais. Ele foi acertado como por um trem em movimento, esmagado contra o carro e empurrado até o muro de uma igreja. Sua visão se enturveceu lentamente e ele arregalou os olhos tentando não perder a consciência, enquanto o abrupto o empurrava e esmagava seu corpo contra o veículo e contra o muro.

Era uma Kombi amarela bonita do tipo que pertenceria a um colecionador. Mesmo com o desgaste do tempo e a umidade da vegetação mutante, a pintura da lataria parecia bem conservada. — Fizeram um bom trabalho aqui. — Ele pensou. Olhou ao redor enquanto tentava virar sua cabeça para trás e enxergar seu agressor. Seu corpo estava preso, mãos e pés amassados contra a lataria sem chance alguma de reação. Mais uma vez arregalou os olhos para tentar ficar acordado. Já havia perdido sangue demais e seus ferimentos já não tinham mais o que vazar.

Dava pra notar dezenas de cogumelos dentro da Kombi, de diversos tamanhos e cores, brotando dos estofamentos rasgados. As grandes raízes do Emaranhado já tinham passado por ali, mas foram arrebentadas pela força do abrupto quando arrancou o carro do lugar. No muro as raízes se espalhavam, vindas de algum lugar, sem origem aparente e sem destino também. Elas apenas cresciam. Fazia tempo que Coletor não adentrava uma área tocada pelo Emaranhado e caçar um abrupto parecia perda de tempo, até que ele encontrou um dos grandes. Chegou a se achar um tolo e pensar que finalmente pudesse morrer.

Ele precisava apenas de um exemplar pequeno, um bem mirradinho que pudesse lhe fornecer um bocado de tecido cutâneo. O poder de regeneração de Coletor não se ativava deliberadamente como acontecia em alguns ímpares, mas ele precisava enxertar matéria orgânica de outras pessoas, matéria que era assimilada com perfeição pelo seu próprio corpo. Tentar usar a biologia mutante de um abrupto no lugar de um humano comum era apenas um palpite, mas ele precisava tentar. Quem saberia as consequências? Coletor já tinha vivido demais para não arriscar.

Desta vez ele tossiu e o sangue começou a escorrer pela boca. O gosto de ferro junto com o cheiro pútrido da criatura começavam a lhe dar náuseas. Os pulmões estavam sendo esmigalhados pela pressão contra seu corpo inerte. A espinha dorsal já tinha ido pro beleléu, quebrada em diversas partes, mas Coletor ainda manteve sua consciência.

Mais um estrondo. Entre revoadas de pássaros agitados e uma fumaça densa, Coletor pôde ver um vulto flutuante no céu, ofuscado pelo brilho do sol. No chão, a criatura amoleceu com metade do corpo carbonizado e tombou para o lado. Coletor não tinha mais fôlego. Respirar era pesado demais, pois seus pulmões já não funcionavam direito. Tudo ficou preto e a mais leve brisa o fez tombar sobre o cadáver do abrupto.


O primeiro sentido que lhe fez recuperar a consciência foi o olfato. Um cheiro de churrasco fez Coletor abrir os olhos lentamente, sem saber onde estava. Ainda desorientado, sentou-se com cuidado e olhou na direção da fogueira improvisada num carrinho de supermercado.

 — Bom dia, bela adormecida.  — A voz era familiar e seu corpo relaxou ao ouvi-la, enquanto apertava os olhos para focar na figura exótica de sobretudo roxo e penteado estranho.

 — Leo, seu filho da puta!  — Coletor diz enquanto abre um largo sorriso e tenta se levantar.

 — É Raio Roxo pra você, compadre. Me chame pelo codinome. Tenho uma imagem a zelar.  — Raio Roxo fala enquanto ajeita alguns bifes na grelha de carrinho de compras.  — E se eu fosse você não tentaria me levantar agora. Sua perna ainda não absorveu os enxertos.

Coletor parou por um instante antes de se levantar e olhou para as pernas, que estavam bizarramente desproporcionais. As veias saltavam como sondas ao redor delas e os músculos dessincronizados formavam saliências tortas fora dos lugares normais. Seus olhos percorrem suas mãos e braços monstruosos, que lembravam os de um gorila. Por fim, desviou a atenção para Raio Roxo e perguntou.

 — O que te fez pensar que eu precisava de ajuda com aquele abrupto?

 — Nada.  — Respondeu Raio Roxo sem retirar os olhos da refeição que preparava.  — Eu quis salvar o carro e você fodeu com ele tentando se matar de novo. Me deve uma Kombi.

 — Eu tava fazendo uma experiência, tentando ficar mais forte antes de voltar pro Novo Rio. Preciso dar uma surra no Cativeiro.  — Coletor finaliza a frase dando um soco na palma da mão. Depois, se desinteressa pelo assunto e se curva para tentar enxergar o que está na grelha.  — O cheiro tá bom. São coelhos?

Raio Roxo solta uma gargalhada pesada.  — Nessa mata a única coisa viva que você consegue caçar são sapos venenosos e mariposas radioativas.

 — Então?  — Pergunta Coletor.

 — Então o quê?  — Retruca Raio Roxo.  — Colei um bocado de carne de abrupto em você e sobraram alguns bifes. Que mal tem?

 — Cara.. você é nojento. Como consegue?  — Coletor levou a mão até o rosto tapando a boca e o nariz.

 — Achei uns temperos especiais. Isso ajuda.

 — Nessa floresta, absolutamente TUDO nasceu pra matar a gente. O que você poderia chamar de tempero, seu retardado?

 — Um bocado de cogumelos que estavam na Kombi.

 


Oddcell é um universo de RPG que aborda um planeta Terra em 2048, devastado por uma guerra nuclear sob resquícios de um vírus que transformou pessoas comuns em seres dotados de poderes inimagináveis. Acompanhe o site e fique por dentro das novidades. oddcell.com.br

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