A sina do Capoeira

encantados-no-kilombo-rpg

Era rotina do Quilombo de Mata Matinta que as crianças se sentassem ao redor da fogueira, tão logo o sol se punha, para ouvir as histórias do Tatá Piolho. Naquela noite quente de verão, enquanto amassava os muruins ora nos braços, ora nas pernas, o ancião gesticulava e tentava, com gestos, contar o ocorrido que dera origem ao nome do quilombo. Se tivessem ouvido a história, se conhecessem a sina da Matinta, dizia, Canela e seus amigos nunca teriam chegado perto daquela velha cabana escura, no meio do brejo, na mata escura, no meio do nada. Mas quando não se sabe de onde vem, nunca se saberá para onde ir, e aqueles eram jovens nascidos e crescidos na fazenda do Coronel Jeremias D’antas. Muito pouco havia sobrado da sabedoria dos Griots; tinham apenas as poucas histórias que os Tatás contavam quando fechavam a senzala e tudo que restava eram suas histórias.

Mas foi assim que tudo aconteceu e foi assim que a história foi contada de geração a geração…

As madrugadas eram muito frias na fazenda do Coronel Jeremias D’antas, que ficava em uma região onde tudo que se plantava eram bananas. As plantações eram como Kalunga, o mar azul que os tinha trazido para o cativeiro, mas no lugar do azul eram oceanos verdes espalhados por centenas de hectares. Havia, no entanto, algo diferente naquela noite pouco iluminada, mais fria e mais escura do que era comum. Canela de Facão acordou ao som dos gemidos de Zara. A Ialorixá estava deitada sobre a palha seca espalhada no chão da senzala. O velho Bento iniciava os trabalhos de parto enquanto pedia à Wawa Aba, seu orixá, seu espírito guia, que deixasse a vida prosperar naquele lugar de morte e dor. Não era incomum que muitas mães dessem à luz no frio da senzala. Pouco importava para as ricas esposas dos coronéis se os filhos de escravizadas morressem ou vivessem, desde que tivessem leite o suficiente para servirem como amas de leite de seus próprios filhos. Muitas vezes, eram elas mesmas que mandavam dar cabo dos inocentes.

Um a um, todos iam despertando e achegando-se; alguns molhavam farrapos na única barrica d’água disponível e traziam para Bento não interromper seu trabalho – uma pequena tigela de madeira com um pouco de água para ser dividida durante a noite. Enquanto as dores do parto iam aumentando, Zara tentava sufocar seus sentidos para não chamar a atenção dos jagunços do lado de fora. A atenção de Canela, no entanto, foi desviada quando a tranca estalou e a velha porta de madeira gemeu; uma corrente de ar frio golpeou seus sentidos. Como uma sombra esgueirando-se lentamente, tão silenciosa quanto a corrente de ar, o Caifás levou o dedo até os lábios em um pedido de silêncio. Segundos depois, os demais notaram a figura coberta de traje escuro como a noite, a capa caindo sobre os ombros, o rosto igualmente coberto, arma em punho. A promessa estava cumprida; o irmão do quilombo tinha vindo abrir as portas da senzala. Já fazia tempo que os Caifáses andavam abrindo as senzalas, mas Coronel Jeremias D’antas era um homem cético e dizia que o advento dos Caifáses, como andavam chamando, era um mito, uma história inventada pelos abolicionistas. Para Canela e seus irmãos, não era ainda a liberdade, mas era o início de uma jornada.

Um ferreiro jovem e forte, de nome Soares, tomou Zara nos braços enquanto Bento tentava, com muita gentileza, fazer parar o choro do recém-nascido. Uma coruja-guincho gorjeou ali perto, e outra respondeu; eram os orixás olhando por seus filhos. Correram por horas pela noite escura, sem descansar, sem olhar para trás. A madrugada parecia, a cada hora, mais fria; por vezes, até os barulhos da mata pareciam ter desaparecido. Apenas o latido dos cães era ouvido, não muito longe. Não era uma noite como outra qualquer. Canela de Facão corria pela vegetação fechada, tentando acompanhar o Caifás, que escorregava como uma sombra entre as árvores. Não muito distante, vinha Zara, ainda enfraquecida pelo esforço do parto, apoiada pelo velho Bento. Nos braços de Soares, a criança, nascida horas antes no chão frio da senzala, seguia silenciosa, protegida dos galhos e dos espinheiros pelos braços fortes do ferreiro. Havia outros, mas na escuridão não era possível identificar os rostos; não havia tempo, os perseguidores estavam em seu encalço. Cruzaram entre os imensos angelins-vermelhos; com mais espaço, era possível acelerar a marcha. Os latidos iam ficando distantes quando, pela primeira vez, Canela ouviu a voz esganiçada:

— Você quer? Você quer?

Seus olhos pararam em uma Murucututu gigante, pousada no galho do angelim. Seu olhar refletia a luz prateada da lua, ainda que aquela fosse a noite mais escura de sua vida. O animal se moveu, saltando sobre o galho, abrindo as grandes asas e retornando ao mesmo lugar. Foi quando ouviu novamente:

— Você quer? Você quer?

Esfregou os próprios olhos, incrédulo. Todos já haviam passado por ele; estava sozinho. A coruja insistiu:

— Você quer? Você quer?

Movido por um instinto sabe-se lá de que, respondeu reticente:

— Sim, eu quero.

Foi quando sentiu as mãos pequenas apoiarem seu braço. Não conhecia o menino que tentava arrancá-lo do lugar; nunca o tinha visto na fazenda, mas seu toque foi o estalo de consciência para que prosseguisse a fuga. Voltou a ouvir o latido dos cães e desapareceu na mata escura em busca dos companheiros, mas jamais os veria novamente, não nesta vida. Dizem, porém, que se alguém fizer silêncio nas madrugadas mais frias, é possível ouvir o toque distante do berimbau e, caso insista mais um pouco, é possível ouvir os passos arrastados do capoeira andando entre as casas e, pela manhã, aqui e ali, é possível encontrar as penas da velha Murucututu. Se isso acontecer em uma noite qualquer, não saiam de casa, não conversem com a Matinta; apenas coloquem um punhado de fumo do lado de fora da porta e ela vai embora.

Um vento gelado cortou os sentidos do Tatá, manso o bastante para trazer o cheiro da mata, forte o bastante para apagar a fogueira. Um dos pequenos ouvintes soltou um gemido que em outra ocasião provocaria risos, mas seus olhos eram assustados e atentos. Um a um foram se recolhendo e, por fim, Tatá Piolho se ergueu, apagou as últimas brasas e seguiu para sua cabana de sapê. Não muito longe ainda conseguia ouvir:

– Você quer? Você quer?

Ele queria, queria muito mudar a sina de seu velho companheiro, queria muito puxá-lo pelo braço como fez na fuga pela madrugada, quando ainda era um menino, mas aquela não era sua sina, o capoeira teria que encontrar o seu próprio caminho.

Compartilhe esse post:

+ ARTIGOS