vazios oddcell Blog

A tarde estava quente e abafada naquele dia. Não que nos outros dias fosse diferente, mas ainda podíamos ver o sol alaranjado furando as nuvens negras e espessas. Eu estava sentado na varanda admirando Dandara, e como os raios de sol brilhavam na sua pele negra e úmida. Ela percebeu e me lançou um sorriso largo, desviando depois o olhar rapidamente enquanto pendurava as roupas no varal.

— Que foi, Alex? — perguntou Dandara acanhada. — Deixa de ser bobo.

Ela jogou uma toalha molhada em mim e continuou trabalhando, tentando disfarçar o sorriso.

— Tava pensando no nome do cachorro — respondi pensativo. — Quero algo simples. Tipo Bob. O que acha?

— Bob? Que nome sem graça! — ela riu. — Pensei em algo mais potente. Tipo Thor.

— Thor? Aquele vira-lata caramelo que vimos ontem tem cara de Thor?

— Claro que sim!  Isso vai dar a ele um pouco mais de autoestima — respondeu Dandara ajeitando as roupas molhadas na bacia. — Falando sério. Já temos tudo planejado. Casa, cachorro, esse mar negro e sujo.

Dandara veio caminhando e sentou ao meu lado, puxou meu braço e se enroscou nele para se acomodar. Depois tossiu de repente por várias vezes seguidas.

— A tosse está voltando — falei enquanto tentava manter o corpo de Dandara ereto para facilitar a respiração. — Há quanto tempo? — perguntei.

— Uma semana praticamente — respondeu Dandara respirando fundo e cuidadosamente.

Olhei para o céu e contemplei as nuvens negras. O vento estava começando a soprar no litoral paulista, e como sempre, trazia aquele pó preto brilhante pelo ar. O chão do quintal já estava bastante salpicado e as roupas do varal, por estarem úmidas, prendiam a sujeira que caía do céu com mais facilidade. Dandara me empurrou quase me fazendo cair, e saiu correndo em direção ao varal. Eu me levantei e fui ajudá-la.

— Vamos! — gritei disputando com o assobio da tempestade que estava se formando. — Deixa que eu tire as roupas do varal. Corre pra dentro e coloca sua máscara.

O vento balançava as telhas de amianto fazendo barulhos cada vez mais altos. Dandara concordou e correu para dentro do nosso modesto casebre.

Não demorou muito para que eu chegasse. Enquanto Dandara trancava as janelas, a porta se abriu numa pancada forte, empurrada pelo vento que zumbia alto e invadia a casa junto com aquela poeira negra. Com as mãos ocupadas, fechei a porta com o pé e depois larguei a bacia de roupas no chão. Agachei e sentei ali mesmo, encostado na porta que balançava como se o vento a esmurrasse exigindo entrada.

— A gente tem que ir embora daqui, Alex — disse Dandara depois de um longo silêncio. — Eu já disse que não vou morar dentro dos muros da Torre Vítrea. Seria o mesmo que concordar com a morte dos meus pais e de tantos dos nossos.

— Para com isso, Dandara — bradei. — Deixa esse orgulho besta de lado. A vida lá dentro é muito melhor do que essa merda aqui fora. Estamos à mercê de saqueadores, assassinos, do Emaranhado e de tanta merda que não dá nem pra contar! Lá dentro nós temos a proteção dos…

— Cala a boca! — Dandara gritou me interrompendo e apontando o dedo indicador. — Não ouse falar dos Vazios dentro dessa casa! Eu vi o Purista transformar meus pais em duas estátuas de ônix bem na minha frente, assim como ele fez com metade da periferia de Santos.

Dandara se aproximou de mim com passos firmes. Depois de me olhar com raiva, estendeu as mãos próximo do meu rosto e me indagou. — Está vendo minhas unhas? Esse pó de ônix maldito que voa por toda a Ilha de São Vicente não está só debaixo das nossas unhas, está na comida, na água, nos nossos pulmões, Alex. Eu to morrendo, porra! Quanto tempo acha que vou aguentar?

Me levantei e, mesmo contra a vontade dela, a abracei com força. Dandara tentou me bater, mas seus tapas desajeitados viraram um abraço correspondido. Ela voltou a se engasgar entre o choro e a tosse seca e barulhenta.

— Eu tenho um plano — eu disse. — Não somos nós que temos que sair da ilha.

E realmente eu tinha um plano. Pareceu tolice deixar Dandara para me juntar aos Araka. O grupo havia travado comunicação comigo já há bastante tempo e depois de todas as minhas recusas, acabei cedendo. Meu currículo como ex soldado do Domo chamou a atenção deles, principalmente por eu ter desertado e fugido pra Santos depois que Dandara e eu nos apaixonamos. 

Fizemos um juramento onde trocamos anéis de noivado prateados, mesmo que isso fosse uma tradição obsoleta neste distrito. Depois parti para me alistar com o grupo armado mais perigoso e procurado do Cinturão Sudeste.

Não sei dizer se foi proteção divina, habilidade ou simplesmente sorte. Foram tantas batalhas e operações nestes três anos, que não tenho dedos pra contar. Fiz parte de um esquadrão anfíbio, que realizava operações em regiões costeiras, mas nunca havia sido designado para uma missão no litoral de Santos até então. Meu estômago revirava quanto mais nos aproximávamos da ilha, e o nervosismo subia pela minha espinha. Eu não sabia como encontraria Dandara, se ela ainda morava na nossa velha casinha perto da costa ou mesmo se estava viva. Deus, ela precisava estar viva. A simples ideia de tê-la perdido me deixava paralizado.

Faltando apenas cinco minutos para que nosso bote atracasse, já podíamos ver as duas torres imensas cortando as nuvens negras do céu noturno. Ela era feita de puro ônix e refletia até nos andares mais baixos, a luz da lua que era captada no topo acima das nuvens. Depois de desligarmos o motor, remamos até a areia negra em silêncio.

O ponto de acesso estava correto. Era um local escuro na praia, onde uma estátua de Onix permanecia sobre um pedestal bem no meio da areia. Era como se ela tivesse dando boas-vindas para quem chegasse por ali. Diziam que a figura do homem gordinho de bigode era de um antigo prefeito que foi morto pelos Vazios quando eles tomaram o distrito. Para mim, sempre foi uma homenagem bizarra fruto do senso de humor sombrio daqueles Ímpares.

Os quatro homens que estavam no bote, contando comigo, desembarcaram. Eu puxei o bote para um local seguro e o cobri com uma lona velha que encontrei em meio ao lixo. O cheiro era insuportável e lembrava algo podre o suficiente para sobrepujar o odor das águas.

— Bravo 1 — um dos soldados, o Bravo 3,  inaugurou a comunicação fechada via rádio. — Que cheiro é esse? Parece que mataram um monte de urubu gordo.

— Não são urubus, mas pombos — respondi.

Bravo 3 olhou para cima e vasculhou os céus. Depois dele, Bravo 2 e Bravo 4 também olharam.

— Não to vendo pombo nenhum — disse Bravo 2.

— Não estão em cima — respondi. — Estão embaixo da gente.

Eu havia esquecido de comentar o detalhe dos pombos. No mesmo instante os três soldados se afastaram uns dos outros, olhando para o chão e chutando a areia para levantar os corpos. Eram centenas deles em estado avançado de putrefação. 

— O que aconteceu com eles? — perguntou Bravo 4. 

— Existe uma barreira vertical que acompanha os muros do distrito — respondi. — É algo eletromagnético ou coisa parecida. Ela serve para impedir que a poeira de ônix invada a cidade, mas também impede os pássaros e os ímpares que tentam invadir por cima.

O cheiro começou a piorar. Bravo 3 ameaçou vomitar e afrouxou a presilha do capacete que ficava próximo do queixo. Quando retirou o equipamento, se ajoelhou na areia. Bravo 3 parecia cansado ou bastante nauseado. Não dava para saber com o homem de costas para mim. Foi quando ele deixou o capacete cair no chão que eu resolvi me aproximar, mas durante meu segundo passo ele já acabava de tombar com a cara na areia onde havia pombos mortos.

Bravo 2 correu na direção do soldado caído. — Homem ferido, homem ferido — ele gritava. Quando fiz contato visual, notei o buraco negro e cristalizado bem na testa do Bravo 3. Era uma emboscada.

— Abriguem-se! — não falei pelo comunicador, mas com um grito em plenos pulmões. Corri para trás da estátua do prefeito, e de costas para o mar, procurei cuidadosamente nos arredores pelo atirador. Bravo 2 ficou ao meu lado agachado no pedestal da estátua. Bravo 4 tentou ir em direção ao nosso bote e quando conseguiu alcançar a embarcação, começou a puxá-la em direção à água, mas nem chegou a sair da areia. Rajadas de tiros de ônix fizeram diversos buracos nele e no bote. 

— Ótimo! Agora estamos presos aqui — disse Bravo 2.

— Pelos meus cálculos, os tiros vieram dali — apontei para um prédio abandonado há uns 500 metros de distância. Não arrisquei levantar a cabeça para tentar ver, mas o atirador possivelmente estaria entre o terceiro e o quinto andar. O pedestal da estátua era suficiente para abrigar eu e o Bravo 2, nem uma pessoa a mais. Qualquer movimento descuidado daria ao atirador um alvo para praticar.

— Será que tem mais deles? — perguntou Bravo 2. 

— Não. Contei apenas um. Se houvessem mais estariam espalhados e nos flanqueando — concluí. — São atiradores de elite a serviço dos Vazios. Patrulham a cidade ocupando pontos estratégicos, e se reportam diretamente ao alto escalão militar das Torres Vítreas.

— Isso significa que… — continuou Bravo 2. —  se ele não nos pegar, essa praia logo logo vai estar cheia de soldados marchando com armas e escudos de ônix. Que ótimo.

— Fique calmo. Vamos esperar — concluí. — Só temos que resistir até o amanhecer. Assim os parcos raios de sol vão refletir nas estruturas de ônix e atrapalharão o atirador. Daí poderemos correr e nos embrenhar nos quiosques abandonados bem ali.

Pelo lado do pedestal dava para ver um monte de casas, prédios, carros e barracas negras feitas de ônix que preenchiam o cenário. Também havia pessoas transformadas, aqui e ali, mas em maior volume no calçadão e nas ruas. Todas elas com expressão de pavor ou dor, exatamente como eu me lembrava da época em que Dandara e eu morávamos por ali. Evitávamos o lugar, pois tínhamos pavor. Aquelas estátuas já foram gente um dia.

— Dizem que por baixo da casca de ônix, a pessoa ainda permanece viva por um tempo — falei pensativo enquanto me acomodava na barreira.

— Lógico que não. A carne toda vira pedra preta, cara. Uma grande pedra maciça — disse Bravo 2.

— Sei lá — conclui. — Tem um cigarro aí? 

Bravo 2 vasculhou os bolsos do colete e puxou um maço de cigarros. Acendeu dois, deu uma tragada dupla e passou para mim — Toma aqui. — Depois, olhou para cima, para a estátua do prefeito que nos protegia do atirador.

— E você, senhor… — Ele agachou mais um pouco para tentar ler a placa que havia no pedestal da estátua. — Ricardo? Vou te chamar de Ricardinho — Eu ri. Que filho da puta me faria rir num momento como aquele?

— E aí, Ricardinho — continuou Bravo 2. — Vai uma tragada? Você tá meio tenso, com os ombros duros.

Ele me viu rindo e riu também. Foi contagiante e rimos juntos por um minuto. Desta vez mais alto. Ricardo levantou o cigarro em direção à mão da Estátua, que estava abaixada como se fosse cumprimentar alguém. Se ali dentro estava o verdadeiro antigo prefeito, aquela foi uma posição estranha para ser petrificado. O que ele estaria fazendo? O rosto da estátua parecia surpreso, com olhos arregalados e boca aberta.

— Ele está surpreso — debochou Bravo 2. — Ele achou que eu não fosse mesmo lhe dar um cigarro. Ei, prefeito, sou gente boa, viu. — o soldado levantou o braço e pôs o cigarro entre os dedos da estátua.

Por um segundo, Bravo 2 pareceu não perceber o sangue esguichando da altura do seu bíceps estourado. E eu não consegui falar por alguns segundos para dizer que ali, além de um cigarro entre os dedos, o prefeito tinha o braço do soldado pendurado como se estivesse de mãos dadas com ele.

Os gritos de Bravo 2 ecoaram pelas ruas e pela praia. Tentei fazer um torniquete, mas o soldado não parava quieto. Tanto se moveu que expôs parte do corpo para fora da barreira e teve a garganta atravessada por outro tiro, desta vez fatal.

Por fim, ficamos apenas o atirador e eu. E acabei cochilando depois de afastar o corpo de Bravo 2 com o pé.

Somente o barulho criava a trilha sonora do lugar. Aves não cantavam. Não existia som de falatório ou de carros nas ruas. Somente o marulho. Foi por isso que alguns latidos vindos das ruas me chamaram atenção. Acordei ainda confuso entre realidade e um sonho. Quando dei por mim, arregalei os olhos e pus a mão atrás da orelha, tentando ouvir melhor.

Mais latidos, agora incessantes e repetitivos. Pelo timbre, parecia um cão de médio porte, como o Bob. Tinha que ser ele. Não exisitam muitos animais por ali, pois nenhum conseguiu sobreviver ao pó de ônix. Aquele cão era forte. De verdade. 

“Acho que ele merecia ser Thor”, pensei. Me peguei num sorriso bobo imaginando como Dandara reagiria agora. Lembrei de quando encontramos o danadinho andando por entre as estátuas de ônix do calçadão. Ele gostava de mijar no jornaleiro, que ficava ajoelhado de frente para o mar como se implorasse por misericórdia. Sempre que tentávamos chegar até o cão ele saía correndo e só conseguíamos encontrá-lo no dia seguinte, fazendo o mesmo xixi na mesma estátua, no mesmo horário.

Um dia Dandara conseguiu conquistá-lo com alguns pedaços de pão, mas ele se recusava a nos seguir até nossa casa. Acho que tinha um lugar melhor pra se esconder do pó de ônix. 

Ouvi um tiro e o latido cessou. Se o atirador estava ocupado, aquela poderia ser a única chance para minha fuga. Obrigado, Thor.

Soltei a presilha do meu capacete, tirei da cabeça e o coloquei sobre o bico do fuzil. Depois apontei cuidadosamente para fora da barreira deixando-o aparecer um pouco. Nada aconteceu. Se houve uma luta entre o atirador e o cão, eu teria mais ou menos dez segundos até que ele voltasse à posição de tiro. E eu precisava de uns quinze para chegar até a calçada.

Corri como um louco. Como se estivesse numa maratona pela minha própria vida. O capacete frouxo na cabeça acabou caindo no meio do caminho. Meus pés afundavam na areia reduzindo a minha velocidade e aumentando meu esforço na corrida, o que me atrasou ainda mais.

Mais um tiro. Desta vez acertou o chão perto de mim. Eu já estava chegando na calçada quando um outro tiro pegou numa estátua há menos de um metro ao meu lado. A bala estourou na cabeça arrancando metade dela. Fiquei estupefato ao ver o sangue escorrendo da estátua. A camada da cobertura de ônix não tinha mais do que um centímetro de espessura. Elas não eram maciças.

O atirador errou mais uma vez e me deu tempo de fazer uma curva desesperada entre as estátuas para entrar em um quiosque. Dali comecei a estudar minha próxima jogada, calculando o tempo e a rota entre carros e pessoas petrificadas. Foi naquele momento que os vi pela primeira vez, frente a frente.

Do outro lado da rua, em direção oposta, o Purista se aproximava lentamente, caminhando com a tranquilidade de um buda. Mas ele não estava sozinho. Os cinco Vazios caminhavam com ele, imponentes como deuses. Tudo conspirava para a chegada cinematográfica do quinteto, com umas brumas esfumaçando seus pés e a tempestade escura se formando no céu distante. Eu permanecia entre os Ímpares mais poderosos de que já ouvi falar, e um atirador de elite habilidoso. Presa fácil, mas ainda um pouco confuso. Por que diabos eles estavam ali? O que queriam de mim? 

A resposta era simples, porém difícil de aceitar.

Me entregaram uma mão de ônix, linda, perfeita. No dedo anelar, uma aliança ainda com seu aspecto prateado estava perfeitamente encaixada. Depois me mandaram de volta para o quartel general com um segredo sombrio, e com uma boa motivação para ajudar a Torre Vítrea a acabar de uma vez por todas com o conflito.

 


Oddcell é um universo de RPG que aborda um planeta Terra em 2048, devastado por uma guerra nuclear sob resquícios de um vírus que transformou pessoas comuns em seres dotados de poderes inimagináveis. Acompanhe o site e fique por dentro das novidades. oddcell.com.br

Compartilhe esse post:

+ ARTIGOS