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Uma pequena multidão começou a se formar após o desabamento. Não dava pra saber se entre os destroços barulhentos que insistiam em deslizar, haviam sobreviventes. Abaixo do prédio em construção, se formou um morro com grandes placas de concreto misturadas com vigas, vergalhões e vidro quebrado. Quando o barulho parou, reinou apenas o ranger de uma parede pendurada por alguns vergalhões, que pendulava lá do terceiro andar. A poeira formou uma cortina de fumaça que os raios de sol tentavam furar.

Um leve som molhado e ôco, compassava-se de dez em dez segundos como um relógio. Parecia vir de dentro dos escombros como um choro ou um murmúrio. Um soluço, na verdade. “Hic!”

 — Tá ouvindo? Parecem soluços  — conclui uma transeunte curiosa.  — Acho que vem dali  — completou ela apontando para a montanha de destroços.

 — Achei! Tem um rapaz pelado aqui  — gritou um bigodudo em trajes esportivos que parecia estar a caminho da academia quando ocorreu o acidente. Ele levantou com dificuldade um pedaço de parede que revelou uma vítima ferida.

“Hic!”. Os soluços puderam ser ouvidos mais claramente. Com o corpo pálido e trêmulo, talvez fosse o único sobrevivente do acidente no canteiro de obras. De costas, sua posição fetal fazia evidenciar uma espinha dorsal bizarramente protuberante. O bigodudo estendeu as mãos para virar o corpo do rapaz que tremia e soluçava. Talvez ele estivesse em choque. Examinando-o de perto, constatou alguns ferimentos e escoriações nas costas, braços e perna. Nada demais a não ser aquela coluna cervical bizarra. Ao conseguir virá-lo para o seu lado, o bigodudo levou um susto e se afastou depressa, tropeçando nos escombros atrás de si e caindo sentado.

 — Pela mãe do guarda! Que porra é essa?

“Hic!”. A vítima ainda encolhida manteve um olho aberto, bem arregalado, como se perguntasse ao bigodudo o que estava acontecendo. O outro olho estava perdido dentro de um inchaço no rosto, que mais lembrava uma laranja vermelha. Com o corpo ainda trêmulo, não se levantou, e nem ao menos saiu da posição. O rapaz apenas olhava enquanto o bigodudo corria para longe.

Mais pessoas se aproximaram. Todos os olhares ocupados em examinar atônitos as imperfeições físicas do sobrevivente. De frente dava para ver uma pequena cauda que se alongava ao final da coluna, curvada entre as pernas. Suas mãos eram disformes, compostas por um par de dedos grossos e um dedão opositor. A cabeça sem cabelos ou qualquer tipo de pelo, pulsava levemente a cada soluçar.

“Hic!”. Curiosos se aproximavam fazendo comentários, com expressões de perplexidade, formando um burburinho. Os sussurros musicavam a cena com olhares de dó, nojo, medo.

— Ouvi dizer que ele trabalhava na construção desse prédio — disse uma senhora carregando um poodle na coleira.

— Isso não é normal. Ouve esse barulho. Parece um peixe bêbado — falou um ambulante com tom de ironia.

— Aqui essa coisa não trabalhava não — resmungou um operário vestindo uniforme e capacete de segurança amarelo. — Isso vem lá do Emaranhado!

— Não chega perto, Sarah — Uma mãe disse para sua filhinha que tentava se aproximar. — Essa aberração pode ter algo contagioso.

— Minha prima disse que os Ímpares nascem assim — comentou um jovem motoboy enquanto retirava o capacete para enxergar melhor. — Tem que chamar os Oncogenes pra nulificar ele.

Um senhor tentou se aproximar, mas recuou. Um cachorro latia incessantemente. Uma criança chorava. O tráfego (carros, apitos, metrô, sirene) participava da sinfonia.

“Hic!”. O soluço continuou, mas mudou de tom. Ficou mais demorado, mais carregado, quase como um apito curto. 

— Será que ele vai morrer? 

— Acho que tá morrendo. 

— Alguém acaba logo com o sofrimento dele!

“Hic!”. 

Os olhares feriam mais do que as palavras. Se lembrou de quando era garoto, sendo alvo de brincadeiras maldosas das crianças em relação à sua estatura. Sempre foi o mais baixinho beirando o nanismo e, além disso, o consideravam feio. Mas aquilo tudo tinha ficado para trás. Hoje ele era o Camarada Tota, querido entre os colegas do canteiro de obras, o baixinho que tirava sarro, que bebia mais cerveja do que poderia caber no seu um metro e trinta de altura, e todos o consideravam. Todos menos o Nunes.

Tota sempre achou que fosse perseguição, que ele era apenas a “bola da vez” e isso mudaria logo que entrasse um cara mais fraco do que ele mesmo na equipe. Nunes sempre “tirava um para Cristo”, fazendo piadas de mau gosto ou pregando peças que muitas vezes davam merda. Era como na escola, só que não tinha professores ou pais que pudessem lhe defender. Nunes tinha costas quentes como genro de alguém de dentro da Hemptons, e todos sabiam que ele nunca havia carregado um saco de cimento sequer em toda sua vida. 

Naquela manhã, Tota estava feliz. Tinham terminado o assentamento da fundação mais rápido do que o previsto. Iam ganhar um bônus que garantiria aquele tênis de amortecedor duplo que vira num brechó da Lapa. Coisas pequenas, mas grandes o bastante para suprir o peso do dia a dia e garantir uma presença bacana no role com os amigos.

De certo que ninguém esperaria aquele desfecho, e Tota começou a se lembrar do cheiro fresco do concreto, do som abafado do metal empenando, do riso de Nunes atrás dele. Uma viga deslocada, uma coluna lateral mal encaixada, tudo só pra ver o baixinho pular.

Mas não deu tempo de pular. Nem para Tota e nem pra ninguém. Uma reação em cadeia causada pelo rompimento de uma viga estrutural e tudo veio abaixo.

Tota sentiu as placas retorcidas, as vigas atravessando sua carne e rompendo os ossos, as pedras esmagando seu corpo. Depois, o peito não se expandia direito. Seu corpo começou a se transformar tentando corrigir os estragos causados pelas graves lesões. Cabeça inchando, os dedos das mãos se fundindo, a coluna se alongando…. Sua garganta queimava. E o soluço começou. No início parecia um espasmo e depois, ficou rítmico, como música ou como o bater compassado de um relógio.

“Hic!”.

“Não monstruoso, mas agora inteiro, completo”. Tota se levantou dos escombros e desde seu mais leve movimento, a multidão já se afastou, abrindo uma clareira ao redor dele. Os espasmos diminuíram e as pessoas observavam aturdidas às sinapses neurais luminosas surgindo pela cabeça do rapaz, pulsante, formando canais e caminhos ao longo do corpo, por baixo da pele pálida.

Os sussurros pararam, mas não para Tota. Os ecos de cada palavra dita ou pensada pela multidão começaram a reverberar retornando aos seus donos. Cada soluço dava um pulso de medo, pânico, nojo, horror, pena.

Cada pensamento cruel, sentido de volta pelos seus donos. Sussurros, sensações, sentimentos. Alguns correram em pânico. Uma mulher se ajoelhou e, em prantos, pediu perdão e implorou para que a dor passasse. Outros tiveram suas sensações intensificadas e vomitaram, vomitaram e vomitaram, até que, de joelhos, não conseguissem tirar mais nada de seus estômagos nauseados. Depois veio o silêncio.

Tota respirou com alívio. De pé e fitando o céu, sentia como se tivesse tirado uma tonelada do corpo. Pôde sentir o vento beijar seu rosto e chegou a fechar os olhos para saborear o momento. Quando os abriu, olhou ao redor, sereno, observando centenas de pessoas caídas pelo quarteirão, até a distância que seus olhos puderam alcançar. Na sua mão áspera, sentiu um toque pequeno e macio.

Ao lado de Tota uma menininha lhe puxava pela mão. Ele se agachou para olhá-la nos olhos. A observou durante algum tempo, quase como se pudesse ler sua alma e depois, passou carinhosamente a mão na bochecha da menina para limpar a poeira. Tota sorriu, esperando que ela lhe sorrisse de volta.

— Não se preocupe, Sarah. Vai ficar tudo bem com ela.

Tota se levantou e caminhou para bem longe. Sarah o observou durante algum tempo, até que quase o perdesse de vista. De longe, acenou com a mãozinha se despedindo de sua boneca preferida, que ela, a aberração, levou embora entre os braços agarrando com gratidão e cuidado.

 


Oddcell é um universo de RPG que aborda um planeta Terra em 2048, devastado por uma guerra nuclear sob resquícios de um vírus que transformou pessoas comuns em seres dotados de poderes inimagináveis. Acompanhe o site e fique por dentro das novidades. oddcell.com.br

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