A chuva oleosa escorria pelos cabelos negros de Marina, manchando e encharcando todo o traje de hipergrafeno. Já dentro do complexo industrial, o som da chuva e o fedor de enxofre ficaram um pouco mais distantes, ecoando lá fora na lataria dos tanques de metal e nos telhados de zinco. Ofegante, Marina escorregou e bateu o joelho contra o concreto empoeirado. Atrás dela uma sombra caminhava, crescendo no portão de entrada e bloqueando a luz da lua que entrava pelo galpão.
Ela nunca havia ido tão longe. Entrar nos domínios da Cepa Negra do Emaranhado, lhe parecia terrível, mas recuar lhe levaria direto para seus perseguidores. Ela precisava seguir adiante. Ainda sem conseguir olhar para trás, se levantou e correu antes que a sombra começasse a se mover. O tamanho enorme com diversas partes de corpos humanos fundidos e se movendo, podiam ser identificados naquela sombra como uma massa disforme de horror. Aquilo era um Dessecador e ela tinha certeza. Ágil, Marina fez uma curva derrapando no chão empoeirado e se escondeu atrás de alguns tonéis de produtos químicos.
Em meio à escuridão do galpão, uma luz vinha de fora mostrando a aproximação do Dessecador através da crescente silhueta. Já era possível ouvir o som arrastado e úmido da criatura em meio aos murmúrios de dezenas de bocas agonizantes. Marina percorreu a mão oleosa pelo seu rosto e garganta, acariciando o colo acima do peito. Se gritasse, seria capaz de lançar um humano a metros de distância, mas usar seus poderes contra aquela montanha de carne seria como atirar pedrinhas num tanque. Ela precisava de mais, precisava de algo mais forte.
— Droga! Droga! Droga! — Marina bateu com a mão na cabeça repetidas vezes. Ela precisava pensar. A criatura se aproximava mais e mais.
Fugir? Para onde? O galpão não tinha saída. Restos de tratores e empilhadeiras cobertos com escombros bloqueavam o portão oposto. Enquanto isso, a sombra… Ela sumiu. Os murmúrios também cessaram. Marina colocou metade do rosto para fora da barreira, o suficiente para tentar visualizar o monstro. Mas ela só pôde ver o rastro de óleo se arrastando até metade do caminho e formando um “L”, contornando para o lado na direção do seu esconderijo.
Cem bocas murmuraram baixinho, tão perto que Marina sentiu o hálito quente em seu rosto com fedor de sangue e suor. Não dava tempo para raciocinar. Enquanto se jogava para trás para fugir do ataque, Marina encheu os pulmões até eles quase estourarem. A mão enorme e gorda da criatura coberta por dúzias de dedos irregulares, destruiu a barreira onde ela se escondia. Tonéis foram lançados para os lados e uma avalanche de líquido de odor amoníaco inundou parte do lugar. Marina se safou do golpe, mas o próximo certamente seria fatal. Ela estava agora sentada no chão com a voz embargada. Sua caixa toráxica aumentava conforme seus pulmões cresciam como balões de festa, e abriam caminho na caixa toráxica quebrando as costelas. A dor era insuportável. Finalmente ela pôde gritar, seja de dor ou raiva. Não importava a diferença.
Primeiro um ribombar seco explodiu do peito de marina e reverberou pelo galpão, talvez até por todo o complexo industrial, fazendo por um breve instante o barulho da chuva sumir. A massa de carne disforme foi arremessada contra a parede lateral com tal violência, que o metal das vigas rangeu. Em seguida o som mudou. Ficou mais agudo como se formasse uma melodia, fina, estridente. As janelas no alto da estrutura estouraram e a pressão sônica rasgou o Dessecador ao meio como se fosse uma lâmina. As fibras da carne se romperam violentamente como um pano velho e úmido, fazendo chover pedaços de corpos fundidos pelo galpão, em todas as direções.
O silêncio trouxe um pouco de paz. Demorou alguns segundos para que parasse de chover pedaços de Dessecador pelo galpão. Depois, com o silêncio, Marina pôde se concentrar novamente no barulho da chuva de óleo negro que caía do lado de fora, que aparentemente seria seu único problema dali pra frente. Seu pulmão desinchou, mas as costelas continuavam quebradas. Ela precisava se levantar e respirar devagar.
Foi então que um som sutil de passos a fez erguer a cabeça, duros e sem cuidado, estraçalhando o vidro quebrado no chão ruidosamente. No portão uma figura em uniforme negro e olhos vermelhos luminosos apontou um rifle de cano estranhamente largo. Um nulificador. Marina tentou se levantar e correr mais fundo para dentro do galpão, mas outros três soldados fizeram uma descida silenciosa de rappel e caíram bem próximos dela.
— Ímpar de Potencial 3 detectada. Atividade de Colapso registrada. — A voz filtrada pelo capacete era seca e desprovida de qualquer emoção. — Protocolo de contenção iniciado.
Marina tentou gritar. Seu tórax doía demais, mas era questão de vida ou morte. Enquanto ela puxava o ar, um tiro acertou seu peito.
— Silêncio, monstro.
Oddcell é um universo de RPG que aborda um planeta Terra em 2048, devastado por uma guerra nuclear sob resquícios de um vírus que transformou pessoas comuns em seres dotados de poderes inimagináveis. Acompanhe o site e fique por dentro das novidades. oddcell.com.br