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O sorriso Perdido

conto oddcel o sorriso perdido Blog

O velho Smith estava de pé, imóvel, afagando seu volumoso bigode grisalho. Diante dele havia um grande quadro envelhecido, com moldura desgastada e mal conservada sobre um cavalete de metal. Seus olhos percorriam a pintura, ou o que restava dela. Na imagem, a tinta craquelada e escura sugeria uma obra bastante antiga, onde a silhueta de uma figura humana repousava vazia no centro, com o rosto apagado ou simplesmente inacabado. Havia um olhar nostálgico entre as pálpebras apertadas de Smith, como se a tela lhe revelasse uma longa película de lembranças fugazes.

Virando-se para a plateia de militares, sentados em cadeiras rígidas e enfileiradas, ele encontrou olhos curiosos. De uniformes azul-marinho, soldados de diversas hierarquias mostravam inquietação, embora não ousassem perturbar o momento de reflexão de seu comandante. Aguardavam impacientemente a continuação das instruções sobre o quadro, ou melhor, sobre quem havia roubado parte dele.

— Eu ordenaria que calassem seus pensamentos, se pudesse ouvi-los. — começou Smith com a voz pesada — O respeito na instrução de hoje não é devido apenas à minha figura, mas também ao que foi arrancado do que restou da história humana. Este pedaço de figura representa um tempo em que o espírito humano ainda dispunha de beleza, um tempo em que o valor intangível e inestimável não estava condicionado a corpos geneticamente modificados ou poderes extraordinários. A capacidade de criar algo como isto — Smith volta seu olhar novamente para a pintura— era um dos maiores e mais belos poderes do ser humano.

Um dos soldados, um jovem ruivo e forte com cicatrizes de queimaduras no rosto, ergueu sua mão.

— E quanto ao nosso alvo, senhor? Por que esta pintura é importante para a missão?

Ainda com os olhos fixos no quadro, Smith levantou sua mão esquerda onde segurava um pequeno controle remoto. — Eu estava chegando nessa parte. — Respondeu ativando uma enorme tela luminosa projetada na parede de trás. Virando-se para a tela, Smith continuou. Com movimentos no ar, ele passou algumas fotos e dossiês em sequência, até que parou em uma delas. Ampliou algumas imagens e as organizou, como se estivessem sobre um grande quadro magnético. A foto em destaque era de uma mulher de pele clara, com cabelos escuros e levemente ondulados que caiam sobre os ombros.

Smith retornou ao tom austero que a posição lhe exigia. — Nosso alvo não é apenas um ladrão, mas um Ímpar da categoria Apex com habilidades únicas. Ele pode absorver pigmentos em imagens e assimilar a figura com precisão molecular, tomando as feições aprendidas através de morfocinese. E caso o toque de assimilação seja feito em um ser humano vivo… — Smith faz mais um movimento com a mão e amplia uma das imagens menores, revelando um cadáver seco, com a pele escura e esticada como se estivesse mumificado. O corpo estava vestido com um uniforme tático do Exclave.

— Por fim — continua Smith —, esta aberração é capaz de se tornar uma cópia indistinguível de qualquer pessoa, seja através de uma imagem ou matando e substituindo o homosapiens original.

O soldado ruivo se inclinou para frente em sua cadeira demonstrando interesse.

— Então ele pode roubar nossas faces? Como sabemos se ele já não está usando outro rosto neste exato momento? Podemos estar atrás de alguém que nunca vamos encontrar.

Smith coçou novamente seu bigode e esboçou um sorriso seco e sem humor.

— Se você soubesse o valor deste rosto, rapaz, saberia que nosso alvo não se desfaria dele tão fácil. Ele está usando o sorriso mais famoso de toda a história da humanidade. Hoje, ele vive como Monalisa.

Os soldados trocaram olhares e um burburinho se espalhou pela sala. O nome carregava consigo um peso que nem a devastação do mundo conseguiu apagar por completo.

— Vocês entendem o que isso significa? — Continuou Smith. — Por isso precisamos dele vivo. Somente assim poderemos tentar fazer com que reverta o processo para recuperarmos o que ele tirou da humanidade.

Um silêncio pesou sobre a sala antes que Smith desse a última ordem.

— Quero ele vivo! Preciso ver este sorriso mais uma vez, mas não no rosto deste monstro.

O ruivo foi o primeiro a se levantar e saiu apressado, com passos firmes e abrindo a porta de saída com força. Próximo dele e tentando acompanhar seus passos, uma jovem cadete que se retirou logo em seguida parecia tentar alcançá-lo.

— Rodney, espera! — O ruivo se virou e, com impaciência, ficou diante da cadete sem olhar para ela. A pele dele bastante avermelhada começava a se umedecer por um suor intenso, embora estivesse bem frio naquela parte da Itália.  — Eles querem que a gente acredite nessa merda, Brenda! — Esbravejou Rodney entre os dentes enquanto desferiu um soco contra a pilastra, deixando um leve rachado na superfície. — Quem roubou a humanidade aqui, hein? Este quadro era para estar em uma exposição, diante dos olhos do que restou do mundo, viajando entre as cidades-estado. O que ele estava fazendo trancafiado num cofre do Exclave? O que mais o nosso sindicato tem de importante e valioso preso naquele cofre? — Rodney abaixa o tom de voz e tenta se acalmar quando uma fila de soldados sai do auditório e passa por eles no corredor. Se aproximando de Rodney, Brenda tenta disfarçar antes de dar prosseguimento à conversa. Ela se senta no peitoral do corredor, onde apenas um vidro retroiluminado separa o grande prédio da Academia Militar do Exclave da paisagem vasta de Sapientia.

— Está claro pra gente que este Ímpar que vamos caçar, quer passar algum recado. Se ele acessou os cofres de Sapientia, por que roubou apenas um pedaço de um quadro? —  Indaga a jovem enquanto seca o suor do rosto de Rodney com a mão. Neste ínterim, ela percebe uma luminescência ígnea se acendendo na região da garganta do rapaz, iluminando veias e a pele como se ele tivesse engolido uma lanterna. Enquanto esconde a garganta de Rodney com a gola do uniforme, ela usa a outra mão para continuar os suaves movimentos no rosto.

— Talvez ele esteja recrutando novos Ímpares que se escondem em Sapientia, para dar um golpe no interior do Exclave. — Diz Rodney, se acalmando com o toque suave da moça. Naquele momento sua pele se tornou menos corada e a luminosidade da garganta, finalmente começou a se apagar. Quando o suor secou e a pele de Rodney retornou ao seu rubor normal, algumas cicatrizes que pareciam habitar seu rosto durante muito tempo, começaram a sumir. Até que, percebendo o efeito do toque de Brenda, Rodney os evitou rapidamente segurando os pulsos da cadete.

— Não. Minhas cicatrizes não. Elas são a única lembrança de quem eu sou. Além do mais, — Rodney olha para os dois lados do corredor onde existe um grande fluxo de soldados saindo da sala, depois olha novamente para Brenda e reduz o tom de voz — é muito arriscado. Podemos ser identificados aqui. Guarde seus sons para quando estivermos a sós.

Aos poucos a rugosidade da pele queimada de Rodney começou a se formar novamente.

— Talvez essa seja a nossa grande chance. Precisamos encontrar o morfocinético primeiro que eles.

 


Oddcell é um universo de RPG que aborda um planeta Terra em 2048, devastado por uma guerra nuclear sob resquícios de um vírus que transformou pessoas comuns em seres dotados de poderes inimagináveis. Acompanhe o site e fique por dentro das novidades. oddcell.com.br

 

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