A noite antes do julgamento de Frankie Marconi foi a mais longa da minha vida. De dentro do escritório, as sombras das pilhas de documentos dançavam nas paredes à luz do abajur, como se zombassem de mim por querer encontrar alguma ordem naquele caos. Do lado de fora do escritório, os cassinos brilhavam com promessas de fortunas, o que pra mim, era uma forma glamurosa de malandros fazerem grana e ricaços gastarem cifras não declaradas. Frankie Boy era um deles. Um “zé ninguém” que por acaso encontrou uma bolsa repleta de dinheiro e documentos incriminatórios de outras organizações criminosas, e usou tudo para criar o seu império sobre os ossos dos inimigos que fizera.
Eu já havia lido e relido tudo sobre Frankie Boy. Todas as provas, planilhas, fotos, ligações, tudo levava à sua organização criminosa, a qual seus associados insistiam em chamar de “empresas”. No dia seguinte todos os holofotes da imprensa estariam voltados para mim e eu estaria no palco da maior chance de encerrar minha carreira com chave de ouro.
No tribunal, o peso da noite anterior se tornava insuportável. Os murmúrios dos advogados e o burburinho dos jornalistas atingiam Frankie com acusações sussurradas. Sentado à bancada, aguardava o início do julgamento, tentando focar nos documentos à minha frente, afastando os pensamentos persistentes da minha cabeça. Eu precisava focar no Frankie e aquele sorriso cínico também me desconcertava. Sentado ao lado de seu advogado, ele me olhava no fundo dos olhos, como se estivesse me esfaqueando por dentro, pouco a pouco. Às vezes esboçava um leve sorriso no canto da boca, mas não mudava de posição, se mantendo sentado de braços e pernas cruzados e tentando me dizer que sairia ileso.
O tribunal foi enchendo e os sussurros ecoavam como o farfalhar de folhas ao vento. Enquanto isso Frankie Marconi se levantou ajeitando seu terno caro, com uma calma que parecia quase desdenhosa. As horas iniciais foram um borrão de depoimentos técnicos e alegações legais. A acusação apresentava Frankie como o mestre de uma teia criminosa genial, enquanto a defesa pintava um retrato de um empresário injustiçado, um homem que havia sido alvo de rivais invejosos. Meus quarenta anos de profissão me fizeram bom em manter a fachada de imparcialidade, mas a figura inquietante de Frankie quase podia me desestruturar. Tudo aparentemente ia contra ele e eu não poderia concluir outra coisa senão a condenação desse infeliz. Só que ele estava calmo demais e tinha uma carta na manga. É claro que tinha. Minha boca estava seca e resolvi abrir um intervalo.
Retornando à audiência, comecei a rever a papelada. Era hora das testemunhas de defesa. Quando abri a pasta com o dossiê de Frankie, encontrei um papel dobrado. Rapidamente o desdobrei e encontrei dentro um bilhete escrito à caneta, com a marca de um beijo de batom sobre as palavras: “Assim como na noite anterior, você decide o quanto eu devo me abrir, querido”. Um frio no umbigo me aturdiu. Um calor intenso me causou tontura. Percorri cada rosto daquele tribunal em busca de um olhar suspeito, mas senti medo de perceberem a minha tensão.
Foi na noite anterior quando decidi dar uma caminhada para limpar a mente. O ar fresco de Nevada não ofereceu o alívio que eu precisava. Então, a solidão me fez entrar num pub barato onde não teria chance alguma de esbarrar com algum colega de trabalho ou qualquer outro homem da lei. Pra melhorar, o barman era boa gente e o jornal que levei para o balcão ficou sem graça frente à conversa animada que tivemos sobre basquete.
— Você tem fogo? — Uma mão tocou meu ombro suavemente. Me virei e dei de cara com o penetrante olhar castanho de uma bela jovem. Muito próxima do meu rosto, pude sentir seu perfume francês. Além de classe, ela tinha cabelos curtos e negros, com uma pinta que parecia se alinhar com o cigarro apagado e sujo de batom no canto da boca. Não consegui disfarçar. Aliás, tentar esconder a surpresa sempre acaba de forma desastrosa, e faz com que você pareça um pateta.
— Bob! Me empresta uma caixa de fósforos. — Pedi sem tirar os olhos da moça.
— Anabelle. — Ela falou com a voz entupida pela tragada que deu no cigarro. Depois, soprou a fumaça para o alto e saiu sem agradecer.
Eu nunca havia saído da linha. Nunca nos primeiros quarenta anos de casado. Depois que meus filhos saíram de casa para construírem suas próprias famílias, Joanna e eu pensamos que viveríamos vidas de adolescentes novamente, transando pela casa como coelhos afoitos. Mas nada saiu como o esperado. A falta da rotina envolvendo filhos e problemas familiares diários nos fez mal e acabamos nos afastando para vivermos um casamento de conveniência.
Anabelle era como Joanna no primeiro dia em que nos conhecemos. Cruelmente semelhante. Desde o corte de cabelo até as curvas da cintura onde os panos do traje azul deslizavam. As costas nuas dentro do vestido, a pele branca, as pintas. Como podia ser tão parecida? Eu poderia dispensar qualquer mulher, mas Anabelle me trazia lembranças que eu queria reviver, e não poderia jamais deixar tudo aquilo passar a esmo. Era como se a melhor parte do passado voltasse à vida. Num quarto barato de hotel, mergulhei intensamente, como se não houvesse mais nada no mundo além de mim, e a jovem Anabelle.
Quando finalmente chamaram seu nome, senti meu coração acelerar. Ela caminhou até o estrado do tribunal com uma elegância que contrastava com a tensão do ambiente. Seu depoimento começou focado em uma surpreendente relação profissional com Frankie, descrevendo como sua influência apenas estendia-se aos legítimos negócios de entretenimento e lançamentos imobiliários. Porém, eu mal conseguia seguir suas palavras. Minha atenção estava presa à maneira como ocasionalmente seus olhos encontravam os meus, cheios de uma promessa ambígua de desejo e destruição. Ela era como um esporte perigoso, que poderia saciar meu desejo por adrenalina, ou me matar ao mais leve descuido.
Frankie passou a exibir um sorriso um pouco mais largo que o de antes. Seu olhar me perguntava se eu teria gostado da surpresa que ele me preparou. Tão perfeitamente intenso, tão alinhado com meu desejo mais íntimo. Aquilo não poderia ser obra do acaso. Esse filho da puta conhecia minha história. Talvez me conhecesse mais do que eu mesmo, e com certeza sabe mais da minha vida do que minha própria família.
Talvez seja um recado para que eu jamais ouse mexer com o pessoal dele. Talvez ele tenha fotografado tudo. Ou filmado. Mesmo que eu o absolva, ele sempre me teria nas mãos. A última coisa que eu queria ser era uma cadelinha do Frankie.
Os advogados da defesa foram incisivos, e a cada objeção e contra-argumento, a tensão aumentava. Durante os depoimentos de uma outra testemunha de acusação, as provas contra Frankie só cresciam e era cada vez mais difícil sequer pensar em absolvê-lo. O tribunal explodiu em murmúrios e eu bati o martelo, pedindo ordem, enquanto lutava para manter a compostura. O martelo ficava cada vez mais pesado, quanto mais eu pensava que ele poderia ser batido contra mim. Poderiam forjar alguma relação com Frankie, já que Anabelle era tão entrelaçada a ele. Entendi que não era somente minha integridade ou a minha carreira, mas toda a minha vida estava à beira de um colapso.
Eu precisava de tempo para digerir tudo aquilo. A sessão foi suspensa e me retirei para o meu gabinete. No dia seguinte eu tomaria uma decisão.
Com o encerramento da sessão o tribunal foi se esvaziando. Frankie e Anabelle saíram sob escolta federal. A imprensa, implacável como sempre, se aglomerava como abelhas no mel. A escolta abria caminho enquanto um carro preto se aproximava do final da escadaria, lentamente abaixando os vidros traseiros. Os flashes das câmeras dos jornalistas foram subitamente substituídos pelo fogo dos canos das metralhadoras que surgiram de dentro do carro. Alguns policiais trocaram tiros, mas eles não eram os alvos.
Frankie e Anabelle dançaram como bonecos quando foram alvejados. Depois, seus corpos escorregaram pela escadaria do tribunal até chegarem na calçada, pintando o caminho com um rastro vermelho escuro. O carro saiu em retirada cantando pneu.
Algum suspeito? Praticamente metade de Las Vegas queria Frankie Boy morto. Porém alguns dias depois Donnie Carrara reaveu todos os bens e o dinheiro que Frankie havia lhe usurpado. Não foi o único a se beneficiar com a morte de Frankie, é claro, mas de longe, foi o maior beneficiado. De quebra, Donnie encontrou gravações que revelavam meu envolvimento com Anabelle, e as enviou para o meu gabinete. Agora, aqui estamos nós, com um novo emprego, dentro do meu velho emprego.
O que seria do crime, se não fosse organizado?
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