O Contrato – Conto de Oddcell

o contrato conto oddcell Blog

Um conto no universo bio-apocalíptico da Terra em 2048 em Oddcell,

por Victor H. S. Thomaz

Uma jovem secretária terminou de pôr os documentos na mesa dos executivos da Corsus. Ela arrumou seus óculos. — Muito obrigado, Karen — disse o homem austero, cerca de 40 anos, cujos cabelos negros bem penteados já eram marcados por duas entradas laterais e tinha um belíssimo cavanhaque. Paulo Lemes Filho, costumava vestir jalecos antes de ser promovido, agora estava com um terno italiano finíssimo com uma gravata vermelha elegante. Ele se levantou de sua cadeira mais alta no final da longa mesa, com a atenção dos outros executivos na sala de reunião voltada para ele.

— Cavalheiros e damas, o que temos como pauta atual? — Ele estava de costas para um quadro branco, cheio de gráficos, números e outras coisas indecifráveis que só engravatados tinham paciência de analisar. Os outros executivos viraram páginas de seus dossiês. Exceto uma: de cabelo curto, penteado pixie quase lambido, alcançou seu bolso discretamente e tirou um pequeno frasco, menor que o dedo mindinho, por um segundo e colocou de volta. O líquido vermelho quase enegrecido era uma potente neurotoxina extraída de um fungo do Emaranhado. Podia ser facilmente adicionado à uma xícara de café ou uma taça de vinho e não haveria gosto ou textura diferente. Sua consistência era resistente à corrosão dos ácidos estomacais, e uma vez que entrasse na corrente sanguínea, era fim de jogo. 

Em seguida, aquela com o crachá escrito ÂNGELA, apalpava com a outra mão, o volume de uma Glock 17 carregada e escondida, caso algo desse errado. Ela não prestava atenção no discurso verboso que o diretor desta filial da Corsus dava, mas sim, ela ouvia com precisão, cada inspiração e expiração de quem estava na sala branca, cada batimento cardíaco dos executivos, e principalmente, os de Paulo.

Horas se passaram, e Ângela não acrescentava e nem comentava nenhum ponto naquela reunião. Ela entrou como uma secretária aspirante, seu trabalho era ouvir e anotar pontos, para então se tornar uma engravatada como aqueles, bom, seu trabalho de fachada, mais precisamente. Após a reunião, Karen foi requisitada em um outro setor do prédio, então restou a Ângela passar o café de Paulo, tudo nos planos.

Ela voltou da salinha ao lado com uma xícara de vidro em um pires transparente, com o café preto na exata temperatura que Paulo especificava. — Obrigado Ângela. — Estava somente os dois na sala de reunião. Ele pegou a xícara e fungou os aromas da bebida, e então, deu uma olhada para a secretária aspirante. — Bem-vinda de volta… Diana. — Ela sentiu seus próprios batimentos cardíacos aumentarem de intensidade. — Achou que eu não iria te reconhecer? — ele questionou, e finalmente bebericou o líquido preto. “Diana” então se virou para ele, e forçou um sorriso. 

— A boa filha à casa torna, não é? Vamos, fique à vontade. Temos muito a discutir desde que você largou a empresa — Paulo disse, em um tom desconfortavelmente amigável.

— Desde que eu encontrei a saída daquele laboratório — Ângela corrigiu. 

— E cá você está! — Paulo degustava a ironia junto do café. — Relaxe, eu não te botarei no laboratório de novo. Tudo o que eu tinha para descobrir com o seu sangue já está lá. — Ele deu um leve aceno em direção ao seu computador pessoal no final da sala, sem saber que isto era tudo o que ela queria ouvir. — O café está uma delícia, inclusive.

Paulo se escorava, quase sentando sobre a mesa cujos papéis da reunião ainda estavam lá. — Então, você, um prodígio com muitos talentos… — Ele bebeu mais um pouco do café, enquanto Ângela pisava em passos curtos no chão, tentando achar um bom ângulo. Ele continuou: — ainda pode ser muito útil para mim. Afinal, você é o meu monstro favorito.

“Monstro” bastava. Ângela ouvia a respiração de Paulo como se estivesse em seu cangote. Ela então alcançou sua Glock em um movimento abrupto. Puxou o gatilho, duas vezes, e dois disparos de 9mm reverberaram na sala. Uma curta névoa carmesim vinha das costas de Paulo, de onde as balas saíram, esborrifando os documentos com sangue. A xícara de café caíu e se desfez em pedacinhos no chão. Não era apenas café que manchou seu terno.

Paulo foi atingido com dois tiros no peito, nenhum acertou o coração, apenas perfuraram os pulmões, ambos. Ele se pôs de joelhos. — Eu não vim trabalhar pra você — disse Ângela num tom frio, enquanto um alarme esganiçava no prédio. — Mas você está certo sobre duas coisas: eu vim a trabalho… e eu sou o seu monstro!

Paulo tentou responder, mas o ar que puxou para falar vazava pelos buracos do peito, seguido de uma tosse melada de sangue. Por mais que Ângela quisesse deixar o bastardo agonizar até a morte, ela deveria provar que o Contrato estava cumprido. Então, um terceiro tiro. Desta vez na testa, terminando de pintar os papéis de vermelho.

Ângela calculava o tempo que tinha até os seguranças da Corsus entrarem na sala. Tinha pouco, mas era o bastante. Vestiu suas luvas pretas, e foi até o computador que tinha uma interface para os sistemas do prédio, perfeito. Teclando sem deixar rastros, ela apagou todos os arquivos sobre ela, junto com os dados das pesquisas geridas por Paulo, e implantou um bug que auto-deletava os registros dos sistemas de segurança, até que fosse removido. — Plano B — ela sussurrou, após ouvir precisamente três homens virando o corredor até a sala. Se escondeu debaixo da mesa, movendo-se com cuidado.

Uma batida de pés na porta dupla a escancarou, e os três homens entraram. — Jack! Temos um código preto. VIP morto! — gritou o primeiro que entrou na sala e já correu até o corpo de Paulo. Debaixo da mesa, Ângela nem precisava tê-los em vista, apenas a respiração e os batimentos tensos já denunciavam a posição e atitude dos três. Ela sabia que os ternos dos seguranças da Corsus tinham uma camada de hípergrafeno, o bastante para parar balas de 9mm. Então ela tinha de ser precisamente letal. 

Viu aquele que chegou primeiro e ia se abaixar para analisar o corpo, e consequentemente teria a encontrado. Mas, um tiro seco na nuca debaixo para cima tingiu o teto branco de sangue e massa encefálica do primeiro. Ao se levantar, sua percepção do tempo dilatada permitia contemplar o rosto pálido do segundo como se fosse uma fotografia. Disparou, bem em seu pescoço, que agora jorrava sangue como uma torneira quebrada. Analisou o terceiro que mal tinha entrado, e nem sacou sua arma. Seu terno não estava totalmente abotoado, grave erro. Bastou o terceiro disparo no peito desprotegido, bem no coração, e ele caíu feito um prédio em demolição. 

Ângela então tratou de recolher os seis cartuchos das balas disparadas, antes de deixar a sala. Nada ficaria para trás. Zarpou até o corredor, mas já ouviu os reforços dos seguranças virem do lado esquerdo-norte. Precisamente, quatro. Ela olhou para o lado direito, onde sua rota de fuga levava, mais dois estavam chegando. — Parada! — Tão logo o aviso dos quatro foi dado, já ouviu estampidos de 9mm deles. Seus sentidos a permitia ver a trajetória das balas, e então teve tempo para desviar. Mas tinha que agir rápido. 

Disparou, sétimo tiro. Acertou a válvula de um extintor de incêndio próximo à eles, cobrindo a área com uma nuvem de pó branco, dando tempo o bastante para focar nos outros dois. Ela nem deixou os da direita posicionarem-se. Dois disparos seguidos, e os dois colapsaram antes que pudessem ver o alvo. Se virou para o outro lado, onde os quatro ainda tentavam se encontrar em meio a fumaça. Ela podia notar as quatro silhuetas, então agiu. Metodicamente, puxava o gatilho quatro vezes, e um após o outro caía com disparos certeiros nos crânios desprotegidos. Ângela recolheu os cartuchos dos outros sete tiros. Resta quatro, não posso mais ter encontros como este, ela pensou.

Ângela havia estudado a planta do prédio antes de sua missão, e já tinha uma rota de fuga em mente para esta exata ocasião. Zigue-zagueando o seu caminho, longe das rotas dos seguranças até chegar na despensa, de onde uma janela ao lado permitia um salto seguro nos sacos de lixo abaixo, fora do prédio, e então, rota segura pelos esgotos. Se ela fosse morrer nesta missão, não seria por falta de preparo. 

Ao chegar no corredor com a janela, a porta da despensa ao lado foi aberta. Uma jovem de roupas sociais, e um par de óculos de grau que deixava seus olhos mais expressivos. Era Karen, a secretária, que carregava uma bandeja de louças e talheres para reposição lá em cima. — Ângela? Como, posso… — A secretária suspirou subitamente após ver a arma na mão de Ângela, assim como seu cabelo agora despenteado e manchas de sangue por todo corpo. Ela sabe. Sem pontas soltas… Ângela pensou rapidamente.

Um estampido de 9mm, o último deste dia. Karen, mal olhou para o baque que levou no peito, talheres e louças tilintavam e despedaçaram no chão. Karen caíu morta com um furo direto em seu coração. Estava feito. Ângela pegou o cartucho e saltou do prédio.

. . .

Após pegar vários transportes diferentes, para certificar-se que não estava sendo seguida, ela voltou para seu apartamento em Novo Rio. Ela apressou-se até o banheiro. Tirou o crachá e pôs na pia. Ângela, apenas mais um dos nomes que ele usara, assim como Sônia, Helena, Magda, e… Diana. Em seguida, removeu de seu bolso, o frasco com veneno de fungo do Emaranhado, ainda cheio. Pôs sua Glock na pia e removeu o pente. Restavam três balas, a mesma quantidade que foi necessária. O que aconteceu não era o resultado esperado pela Agência, apressada, imprudente, desleixada até. Mas ela estava satisfeita. Nove guardas, e uma secretária inocente além de seu alvo. Com toda aquela carnificina, foi fácil para as equipes de limpeza proverem uma estória convincente. Para os noticiários, foi ataque de um Ímpar descontrolado, o que, bem, não estava longe da verdade. 

Ela lavou o rosto, removendo toda a sua maquiagem. Via a sua própria imagem, como realmente era, uma membro da Agência, nada mais. Contrato inacabado é vergonha, Contrato fracassado é morte. Mas este Contrato, foi cumprido.

 


Oddcell é um universo de RPG que aborda um planeta Terra em 2048, devastado por uma guerra nuclear sob resquícios de um vírus que transformou pessoas comuns em seres dotados de poderes inimagináveis. Acompanhe o site e fique por dentro das novidades. oddcell.com.br

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