— Vamos por partes, Julio. — diz calmamente o homem musculoso de jaquetas surradas e máscara de pano preto, enquanto permanece de cabeça baixa para manter seu rosto encoberto nas sombras. — Primeiro, tira essas algemas dos meus pulsos. Você sabe que elas não adiantam de porra nenhuma.
Julio assentiu com a cabeça, enfiou as mãos no bolso do paletó e retirou um molho de chaves. Após destrancar as algemas de seu detido, desatachou seu distintivo do cinto e o colocou em cima da mesa junto com sua Glock. Depois, esticou o braço para trás e desligou a câmera que filmava o interrogatório.
— Pronto. Já estamos sozinhos. Desembucha. — Falou Julio enquanto cruzava os braços impacientemente.
— E aí? Vai me deixar fazer o meu trabalho em paz? Sabe que meu problema não é com vocês, “homens da lei”. — Disse o encapuzado enfatizando o termo de forma desdenhosa.
Julio se levantou, olhou para o teto e suspirou cansado. Puxou um cigarro do bolso do paletó, acendeu, e após a primeira tragada ofereceu para o mascarado, que permaneceu quieto esfregando os pulsos marcados pelas algemas.
— Toma, pega. — Disse Júlio.
O suspeito levantou a parte de baixo da máscara para deixar livre a boca, pegou o cigarro e permaneceu com ele entre os lábios. As cicatrizes no queixo e lábios eram evidentes. Cortes desleixados provavelmente causados por golpes de faca. Um outro na lateral da mandíbula talvez fosse um tiro que tivesse passado de raspão, deixando um rastro de queimadura com uma quelóide em alto relevo. Julio observava analisando as cicatrizes enquando o mascarado soltava uma vigorosa baforada.
— Faz tempo que não fumo um desses. É Derby, né? — Perguntou o mascarado, examinando de perto o cigarro entre os dedos.
— Sim. — Respondeu Julio. — Ainda conseguimos algumas caixas vindas de fora dos muros. Como você bem sabe…
O encapuzado não deixou Julio terminar a frase e respondeu por ele. — A fábrica de cigarros foi pro caralho. Sim, eu sei e você sabe: fui eu quem detonou tudo. E o Domo decidiu instalar uma fábrica de munições no lugar. Decidiu também que cigarro era perigoso demais pra população. Ofereceu doses de nicotina diárias pra poder controlar os viciados, assim como fez com outras substâncias, as mesmas substâncias que eles continuam escoando pelo ralo das Comunidades das Beiradas.
Um soco sobre a mesa ecoa na sala, e fez Julio, que estava de costas, se virar para o encapuzado ao levar um susto. No mesmo instante, alguém bateu na porta da sala.
— Tá tudo bem aí, delegado?
— Sim. Tá tudo ok. — Respondeu Júlio tentando disfarçar sua tensão. — Porra, Cativeiro! Ficou maluco? Quer me foder? Sou eu quem mando nessa delegacia e basta um único sinal pra entrar todo mundo atirando em você.
Cativeiro sorri, ainda com a parte de baixo da máscara levantada e brincando com o cigarro preso entre os lábios.
— E de que adiantaria? Eu poderia calcular todos os movimentos e possibilidades, evitar os ataques, matar todo mundo e sair daqui caminhando. Já não me importo com um crime ou dois a mais na minha ficha. Aliás, limpe o rabo com ela. Eu vou embora.
Cativeiro se levantou e o delegado Julio se colocou entre ele e a porta tentando impedi-lo de sair. Encostando o dedo indicador no peito do mascarado, Julio falou entre os dentes.
— Senta aí, porra! Quer acabar com o nosso lance? Se eles descobrirem que eu te passo informações sigilosas da corporação, eu to fudido, sabia? Pra você não pega nada. Você sumiria por aí como fumaça, como sempre faz, e eu seria preso e quem sabe viraria cobaia nos laboratórios da Corsus. Então vamos acalmar os ânimos. Só preciso que você fique uma semana pelo menos. A cela é confortável e garanto um jornal todo dia pra você se atualizar sobre as notícias. Depois, quando for transferido pro presídio, você faz a sua mágica, mata todo mundo e foge. Pronto! Tá resolvido!
Cativeiro dá de ombros e se senta novamente.
— Uma semana, nem uma hora a mais. — Retruca. — E eu fico com TODOS os meus pertences. Inclusive a máscara. Nela ninguém toca.
Aquilo não poderia nem mesmo ser chamado de máscara. Era um pedaço de pano preto usado para esconder seu rosto, com um nó na parte de trás da cabeça. Isso em conjunto com um sobretudo todo feito com tecido balístico retirado de resto de trajes militares, compunha um visual ameaçador. Em contraste, vestia calças jeans e camiseta promocional de um produto de limpeza.
Uma semana seria muito para o vigilante sombrio, mas algo suportável. As duas primeiras noites foram tranquilas se não levar em conta os xingamentos incessantes vindos das outras celas. A maioria daqueles homens foram presos depois de levar uma surra de Cativeiro, o que geralmente rendia cicatrizes e marcas vitalícias caso o coitado saísse vivo. Então, a cela era uma agradável forma de reconhecer que se é um dos poucos a não morrer nas mãos de Cativeiro.
Três dias. Muita coisa se passa na cabeça de um homem quando está em um quadrado gradeado por mais de 60 horas. Cativeiro pensava em desistir do acordo. Arrombar as grades e sair pela porta da frente seria fácil. Com suas habilidades, havia calculado uma chance de 93,25%. Se resolvesse calar a boca dos bandidos das outras celas, as chances cairiam apenas 2%, algo aceitável. Mas continuar o trabalho sujo lá fora seria difícil com toda a polícia e o Domo no seu encalço. Então, resolveu esperar.
Cinco dias. Os domingos costumavam ser agitados na delegacia do Novo Rio, mas não neste dia. Tudo estava calmo, mas tão calmo, que esqueceram até de entregar o jantar. Naquela noite nem mesmo as vozes já conhecidas dos outros presos podiam ser ouvidas.
A máscara. Cativeiro puxou o tecido preto de sua máscara para baixo, para ajustá-lo melhor. Havia um som de tilintar de metal sendo arrastado contra as barras das celas que crescia cada vez mais, vindo do portão de acesso até sua direção, calma e vagarosamente. Cativeiro olhava para a cela em frente tentando encontrar movimento, mas percebeu que o detento dentro dela apenas dormia. Assim como os outros detentos das celas no seu raio de visão.
— Mas que ironia! Cativeiro em cativeiro. Pensei que jamais me deleitaria com tal cena. — Diz uma voz fina vinda da direção dos tilintares. Embora o barulho e a voz se aproximassem lentamente, não haviam passos. Tudo era silêncio, ao redor do barulho de metal contra metal.
— Você é mesmo um rato. — Disse Cativeiro balbuciando. — È só colocar uma isca dentro da ratoeira e o rato aparece.
Lentamente, uma sombra banhava a ala das celas se arrastando pelo chão, e em poucos segundos dava lugar a um homem estranho, de aparência cadavérica que flutuava de forma imponente até a cela, arrastando uma caneca de metal pelas grades do complexo.
— E o que te faz pensar que EU caí na sua armadilha se é VOCÊ quem está preso? — Disse o homem misterioso enquanto terminava sua trajetória e parava bem em frente à cela de Cativeiro, flutuando a um palmo de altura do chão. Ele trajava um terno branco impecável, com um cravo no bolso da frente e uma capa vermelha esvoaçante que beirava o ridículo.
Cativeiro sorria por baixo de sua máscara. — Poderes mentais não me afetam, Sereno. — Retrucou Cativeiro. — Não até que você consiga tirar minha máscara. As chances de eu abrir esse portão e te encher de porrada já foram calculadas, e adivinha…
Clank! A cela de Cativeiro se destrancou, deixando o portão entreaberto. Sereno imediatamente olhou para a fechadura e percebeu um dedo pendurado nela com parte do osso da falange para dentro do buraco onde se encaixaria a chave. Tentou voltar seu olhar para Cativeiro, mas não o encontrou mais dentro da cela. As luzes do complexo se apagaram, ficando a lua como o único holofote cuja luz entrava pela clarabóia e iluminava a expressão de medo na face cadavérica de Sereno. Uma voz grave e rouca ecoou no corredor.
— Sabe quantas chaves eu vou fazer de você hoje?
Continua…
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