Me sinto tão brasileiro que quase não me lembro como cheguei até aqui. Na verdade prefiro até esquecer a minha vida antes das bombas. 15 anos de idade, uma aposta em corrida de cavalos e toda a hipoteca da casa foi por água abaixo. Meu pai, um bêbado fodido me espancou até eu desmaiar, e quando melhorei, procurei meu rumo e fui viver nas ruas. Uma família de porto-riquenhos me levou de Detroit para o México, e lá eu aprendi a me virar.
Não é de se espantar que eu seja brilhante em cálculos e raciocínio lógico. O vírus quase me matou, mas de alguma forma ele resolveu me manter vivo, potencializando as minhas capacidades de tal modo que acabei sendo expulso de todas as mesas de pôquer que participei. Depois disso, tentei caça-níqueis, dados, roleta e todos os tipos de apostas que eu poderia prever, mas fui ameaçado de morte e espancado por diversas vezes. Até que voltei para a corrida de cavalos. Nela eu comecei a entender o que se passava comigo. Aquele raciocínio potente e os palpites exatos antes mesmo dos dados rolarem, não serviam para eu saber em qual cavalo apostar. Poderia dizer que a distância atrapalhasse o lance todo, mas quando eu estava nas arquibancadas acontecia a mesma coisa. Foi por isso que vim pro Rio de Janeiro. Vim atrás dos cavalos e de jogos de apostas que me rendessem uma boa grana sem que eu precise ser espancado por isso. Esse lugar me pareceu o único que ainda tem jogos legais e corridas televisionadas.
Meu relógio italiano marcava meia noite e três minutos. Tentei disfarçar, como sempre faço. Os olhares estavam tensos naquela mesa de pôquer clandestina enfiada no cú de uma favela. Eu já tinha arrecadado um bom dinheiro e era hora de parar. Mas “a saideira” é cruel e sempre nos chama a uma última partida – Seja lá quantas elas forem.
A fumaça era densa, misturando cigarro barato com maconha mesclada. Dos quatro oponentes, três estavam fumando e um parecia tão concentrado que uma simples baforada denunciaria seu nervosismo. Talvez por isso ele preferiu não fumar. Nem mesmo cerveja o careca bebia. parecia um espantalho seco, cujo o único movimento era esticar o braço para sacar uma carta e depois depositá-la entre as cartas da outra mão. Esse puto me desconcentrou. Se demonstrar tanta frieza foi o seu truque, funcionou comigo.
Tentei prever suas ações, mas minha memória premonitória só viajava cinco segundos de seu futuro, e nele, o careca estava da mesma forma, parado e com cara de estátua do museu de cera.
Era melhor eu parar. Baixei um full house com a certeza da vitória, fui catando as fichas que estavam sobre a mesa. Dois jogadores já tinham desistido naquela rodada, ficando apenas eu, o careca espantalho e um moreno magro com bigode fino, daqueles que se usavam na época da máfia italiana. Ele deu um estrondoso tapa que estourou na mesa e todos se assustaram.
— Que porra é essa, gringo? Tá ficando maluco? Tu vem aqui, ganha tudo na mutreta e ainda quer se fazer de engraçado? — Eu não sabia do que ele estava falando, mas parei de catar as fichas e fiquei aguardando o desfecho do emputecimento.
— Deixa as porras das fichas aí, mermão! Quem ganhou fui eu!
Pude ver de perto aquelas mãos finas com unhas grandes de ponta reta, baixarem a última carta de um royal straight flush, um às de copas cujo o vermelho me gelou a espinha. Como eu pude ser tão descuidado? Fiquei tentando prever o careca, mas não era ele que deveria ser o meu alvo. Acabei esquecendo do terceiro jogador, que me pegou de calça arriada no fim do jogo.
O careca juntou as cartas e se levantou da mesa, ainda sem expressão. Fiquei olhando para ele com tanta curiosidade que o som do magricelo esbravejando e xingando do lado do meu ouvido esquerdo se abafou e ficou quase inaudível. Comprei uma carta do baralho que estava sobre a mesa e virei, procurando uma pista do porvir. Minha memória precognitiva só se ativava com algum tipo de aleatoriedade, como dados ou uma carta de baralho, algo que estivesse próximo a mim e que eu não pudesse prever normalmente.
Minha carta era outro às de copas. Seria sarcástico chamar isso de dejavú, mas foi o que pensei na hora. Vi o vermelho da carta virar sangue, inundar a sala e matar quase todo mundo. O magricela era atingido na cabeça por um tiro que pintava a parede atrás dele com massa cefálica. Os outros dois que tinham saído, voltavam de costas olhando para a porta, assustados, e são crivados de balas em seguida. Eram rajadas consistentes de algum tipo de metralhadora ou fuzil automático. Na visão, as balas passavam por mim como fantasmas e atingiam o corpo estático do magricela fazendo voar partículas do tecido do terno que se misturavam na poeira. Eu não estava na visão, não como parte dela. Meu corpo era apenas um mero espectador do passado presenciando uma cena no futuro e estas cenas nunca falhavam. O que aconteceria comigo ali? Para onde foi o careca? Quem era ele? Por que eu não conseguia prevê-lo?
Minha mente retorna à mesa de jogo no momento atual. O magricela tenta recolher as fichas desajeitadamente entre os braços e desiste. Pega a toalha da mesa redonda, junta as pontas e faz uma trouxa, como se estivesse indo viajar e carrega as fichas e todas as cartas do jogo indo reivindicar seu prêmio. Eu nunca errei. Não como hoje.
Antes mesmo do magricela abrir a porta, a polícia invadiu, arrombando-a com um chute que destruiu parte da parede onde estava a fechadura. De costas para mim, o magricela levantou os braços e deixou cair a trouxa, fazendo espalhar fichas de poker por toda a pequena sala. Na parte de trás da sua cintura, eu podia ver o cabo de uma Beretta 9mm e não pensei duas vezes. Estava entre os policiais e o magricela e ele me serviria como um bom escudo. Voei na cintura dele para puxar a pistola. A polícia não estava ali para apreensões, prisões ou bate-papo. A POB veio pra quebrar e somente um ficaria de pé naquela sala. Era um deles ou eu.
Fumaça, poeira, tiros e sangue. Meu relógio italiano marcava meia noite e três minutos.
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