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Letargia

letargia

Ainda me lembro do dia em que as luzes do laboratório piscaram e os sistemas de segurança falharam. A porta, que estava trancada há anos, de repente se abriu. Ficar preso num complexo de pesquisas deixara de ser seguro e não fazia sentido o meu confinamento. Como um prisioneiro que de repente encontrou sua cela aberta, resolvi deixar a zona segura. Hesitei por um momento, olhando para a escuridão além da porta. Então, com um suspiro de determinação, peguei minha lanterna, mantimentos, vesti o traje de exploração e saí.

O mundo exterior era um espetáculo a ser visto. A vegetação cobria tudo, criando um labirinto verde de plantas e flores mutantes. O ar cheirava a terra e folhas, um aroma que eu quase esquecera. Não era incomum que de tempos em tempos, enquanto eu me embrenhava na mata entre caminhos sem volta, me invadissem torrentes de aromas diversos, aparentemente tóxicos e surpreendentemente agradáveis. Me senti pequeno e insignificante diante da vastidão do Emaranhado, mas também senti uma onda de emoção e antecipação, por estar finalmente livre para explorar o mundo que estudara por tanto tempo através das janelas do complexo de pesquisas virais de Boston.

Comecei minha jornada com o coração cheio de esperança. Estava ansioso para testar minhas teorias e descobertas em campo, para ver o Emaranhado com meus próprios olhos nus e poder tocá-lo. A cada passo e cada pegada na terra fértil, a vegetação parecia me abraçar gentilmente, me aconchegando cada vez mais em seu seio acolhedor. Perigos, obviamente existiam e eu tinha certeza disso, mas não me atentava a eles. Tudo o mais parecia insignificante diante do êxtase da comunhão. Estava perdido, mas me senti encontrado e embalado pela mãe verde e só isso me importava.

A fauna me parecia inofensiva. Espécimes curiosos de pequeno e micro porte transitavam por todos os lados da floresta, fazendo cada cipó ou cada folha se tornarem uma cidade que fazia parte do grande todo. A luz do dia começava a desvanecer quando um descuido me fez tropeçar e cair em uma pequena ribanceira. O traje de exploração era hermeticamente fechado, mas alguns galhos ou pedras o rasgaram em algumas partes, permitindo a entrada dos aromas exóticos com mais pungência. Com o olfato superexcitado, não fui capaz de notar as pequenas formigas que entraram pelas frestas rasgadas do traje e passeavam sobre os ferimentos e arranhões. Não houve dor, apenas comichões que cessaram com uma rápida limpeza manual.

Deviam haver muitas delas por ali. Ninhos enormes parecendo morros de terra que chegavam a ter um metro e meio de altura, se revezavam aqui e ali por uma grande área mata a dentro. Um formigueiro comum poderia chegar a cerca de 60 centímetros apenas, contendo até 5 milhões de formigas em seu interior. Mas estas com certeza não eram formigas comuns. E eram tão pequenas.

Cansaço. Mesmo dez minutos depois da queda as escoriações ainda doíam, e a respiração cada vez mais ofegante, mesmo respirando um ar tão puro e fresco. Achei que uns minutos de descanso seriam saudáveis e me sentei ao lado de um dos formigueiros. Um dos grandes. Parecia ter pouco mais de um metro e sessenta de altura, feito com uma terra escura e úmida que ainda deixava alguns grãos deslizando ao longo da estrutura. Levei minha mão até um deles e tateei um punhado de terra retirado da superfície, constatando que pareciam ter sido construídos em pouco tempo e muito recentemente. Foi quando pude olhar mais de perto. Meu rosto a centímetros de distância percebendo como um pequeno pedaço quase no topo daquele monte de terra se mexia, como se formigas fossem sair dele e abrir um caminho para fora. Resolvi encostar um dedo para liberar a passagem. Mas no lugar do pequeno bloco de terra que caíra, abriu-se um olho humano.

Meu coração pareceu parar por um instante que, mesmo durando fração de segundo, pareceu longo o suficiente para que eu me visse preso em choque. O olho se movia lentamente, com a pupila mirando a minha figura. Até que me joguei para trás tentando afastar-me do formigueiro, com o pulmão inflado num grito de pavor. Atrás de mim haviam outros morros de terra e meu movimento me fez cair sobre um deles, fazendo-o desmoronar e revelando o cadáver de uma senhora que estava em posição fetal, e depois jazia caída ao chão em estado de decomposição avançada.

Que bizarrice seria aquela? Quem era aquela pessoa? Como ela acabou ali? E, mais importante, a primeira estava viva com o olhar em movimento? Me recuperei do susto colocando a frente toda a minha postura científica e me levantei para tentar me aproximar do formigueiro que me observava. Por alguns segundos fiquei de pé diante da estrutura enquanto trocávamos olhares, onde eu pude notar verdadeiro pânico e agonia. Me aproximei e comecei desmontando os blocos de terra pelo topo, revelando os cabelos negros de um jovem esguio, aparentemente saudável, vivo e com olhar estático. Sentado e abraçando as próprias pernas, seu olhar parecia me pedir ajuda, mas seu corpo não se mexia.

O grito que eu havia dado anteriormente parecia ter esvaído todo o restante de ar dos meus pulmões. Me sentei ao lado do rapaz sem ter força para ajudá-lo. As formigas já haviam tomado conta dos meus pés e subiam pelas minhas pernas. Mas eu não tive forças para levantar ou para bater as mãos para afastar os insetos. Me senti impotente, preso em meu próprio corpo.

Já está escurecendo. Meu corpo treme bruscamente sentindo um frio terrível. Só tenho forças para abraçar minhas pernas e tentar conservar o calor do corpo para impedir a  hipotermia. A mente se tornando cada vez mais turva. Preciso ficar acordado. Preciso lutar.

Essa paz.

Será que a senhora ou o rapaz sentiram paz? Embora suas expressões faciais tenham me dito o contrário, eu acho que eles estavam bem. Os pensamentos se dissipando como nuvens de fumaça fina e os músculos relaxando aos poucos. A sensação de prazer é como vislumbrar uma manhã ensolarada em meio ao parque repleto de pássaros. O barulho do riacho, as mariposas rangendo. O cheiro de terra úmida. Tudo é paz.

Não vejo mais nada, mas agora estou aquecido. Tenho paz.


Oddcell é um universo de RPG que aborda um planeta Terra em 2048, devastado por uma guerra nuclear sob resquícios de um vírus que transformou pessoas comuns em seres dotados de poderes inimagináveis. Acompanhe o site e fique por dentro das novidades. oddcell.com.br

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