indigo oddcell blog

Armada e desesperada. Os olhos de Lindsey congelaram sobre o vulto macabro de Thomas. O abajur banhava a silhueta num amarelo cansado, desenhando o sobretudo como último resquício de forma humana. Enquanto permanecia parado diante dela, oito tentáculos úmidos e pegajosos serpenteavam do peito de Thomas.

O olhar faminto sobre ela era firme, seco e animalesco, diferente daquele velho Thomas que Lindsey havia conhecido. Ele já havia sucumbido. Se ainda restava alguma humanidade, isso era o que o impedia de atacá-la de imediato.

A arma apontada para Thomas vibrou no punho suado. Lindsey segurou o pulso que a empunhava tentando deixá-la mais firme. Depois engatilhou com um clique ecoante, um ato ingênuo que não intimidou o monstro.

Thomas avançou e Lindsey recuou. A moça tropeçou e caiu sentada no sofá vermelho de suede. O vacilo desviou seu olhar por um segundo, quando Thomas finalmente atacou.

No caminho, ele puxou com o pé o fio de um refletor, que quase caiu. Parou por um momento bem próximo ao rosto da moça e olhou para além dela, buscando a aprovação de alguém.

 — Corta! 

O grito seguido pelo baque da claquete ecoou no set de filmagem. Thomas baixou o zíper do traje cenográfico, que emperrou na metade do caminho. O assistente tentou arrancar a veste e ficou com a luva presa entre os tentáculos.

 — Isso vai dar pesadelo no pessoal do figurino  — Lindsey zombou quando passou por Thomas, e esfregou os cabelos com a toalha, como quem apaga um pequeno incêndio.

 — Sai, praga  — ele puxou o traje com força e o assistente caiu sentado no chão.  — Que cheiro é esse?

Ninguém respondeu. O set tremelicava com pequenas falhas de energia de vez em quando. Zumbidos de refletores, trilhos rangendo na desmontagem, cones de poeira desenhando os fachos de luz vindos do teto. Do corredor, um alarme de racionamento uivou três vezes. Na porta, um drone que estava de passagem parou e mirou seu olho de câmera para dentro do galpão, piscando e ajustando o foco a todo instante.

 — Eu estava derretendo aí dentro  — Thomas balançou a cabeça.  — Ainda não me convenceram de que não dá pra fazer essa cena em pós-produção.

 — E você serviria para que?  — ela respondeu, e o drone rangeu ajustando o foco, paciente.

Lindsey parou em frente ao espelho e se observou, enquanto retirava a maquiagem dos lábios. Atrás dela a equipe trabalhava como um grupo de formigas. Cabos sumiram. Trilhos foram empilhados. Todos os refletores foram desligados deixando o protagonismo para as lâmpadas do camarim que iluminavam ao redor do espelho.

 — Tô afim de tomar aquele milk-shake do trailer lá da entrada – disse Lindsey sem tirar os olhos do espelho.  — Vamos?

Thomas olhou para a janela e viu uma placa luminosa lá fora, escrito “Shakes” e piscando com o selo do Domo: “Leite Reconstituído Tipo C2”. Depois deu de ombros.  

Lindsey tirou o batom com um algodão que ficou todo vermelho. Depois puxou os cílios postiços em um só gesto. Por fim, ergueu a peruca como quem apoia uma coroa no altar e a pousou no suporte da mesa.

— Você ainda insiste nessas porcarias  — disse Thomas.

— Eu insisto no que me dá pelo menos um minuto de normalidade.  

Lindsey retrucou e só então percebeu como a própria voz estava cansada.  — Um minuto de vida comum, Tom. Só quero um minuto.

Ele ia dizer alguma coisa, mas só assentiu e abaixou a cabeça. Depois caminhou até ela lentamente. O drone bipou mais uma vez.

 — Linds…  — Thomas começou com lábios trêmulos, mas as palavras ficaram presas entre eles. — Há feridas que não cicatrizam nunca. 

Thomas olhou para a poltrona vermelha, imaginando o menino risonho, ocupando aquele espaço vazio.

 — Estou tentando superar, querida  — a frase saiu firme, como se tivesse sido ensaiada.  — Viver sabendo que ele não volta é o melhor que eu consigo.

 — Eu sei, Tom  — ela respondeu.  — Era a bebida favorita dele.

Thomas a abraçou e depois segurou o rosto dela gentilmente com ambas as mãos. Se olharam nos olhos por alguns segundos, mergulhando profundamente um no outro. O perfume Veggi de Lindsey aguçou as lembranças de Thomas.

Uma lágrima desceu sem pedir licença. Rolou devagar no rosto da moça, removendo a camada de maquiagem branca e deixando um rastro azul, frio como um mineral raro. Thomas ergueu o polegar e secou, revelando ainda mais a pele índigo.

 — Você é linda  — disse ele.  — Única, rara.

O drone à porta ressincronizou as lentes. O mundo lá fora fazia barulho, com a equipe carregando caixas, rindo, conversando. O alarme de racionamento soou mais uma vez e as luzes dos espelhos se apagaram, restando apenas alguma claridade vinda de fora.

 — Vamos  — disse Lindsey decidida.  — Antes que feche o trailer.

Thomas ficou um instante admirando as feições da moça como se fosse a primeira vez, enquanto ela calçava os sapatos depressa. Depois, atravessaram o corredor sob a atenção atenta do drone ajustou suas câmeras acompanhando o movimento do casal.

Do lado de fora o letreiro piscava com a palavra “Shakes”. Abaixo, alguém riscou a  palavra “Leite Reconstituído Tipo C2” e escreveu “a gente se acostuma com qualquer merda”. Lindsey encostou no trailer ao lado do balcão e suspirou olhando para o céu.

 — Quero dois  — ela disse para a atendente que assentiu sem ao menos levantar os olhos.  — Com tudo o que tem direito!

Thomas sorriu de canto.

Quando o copo gelado encostou em suas mãos, Lindsey trouxe para fora mais memórias afetivas do que o próprio sabor da bebida teria trazido. Thomas encostou no ombro dela mexendo no copo com o canudo. No fundo, a atendente tagarelava ao telefone. Ao longe, o drone apagou as luzes e foi embora voando para o alto.

 — Um minuto de normalidade, Thomas. Um minuto.

 


Oddcell é um universo de RPG que aborda um planeta Terra em 2048, devastado por uma guerra nuclear sob resquícios de um vírus que transformou pessoas comuns em seres dotados de poderes inimagináveis. Acompanhe o site e fique por dentro das novidades. oddcell.com.br

 

Compartilhe esse post:

+ ARTIGOS