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Eu corri, e corri muito. A ponto dos meus músculos da perna adormecerem. Eu não sentia mais nada. Acho que era a adrenalina ou medo mesmo. Em cada uma das curvas nos becos da COHAB eu olhava pra trás tentando ver se ele estava próximo.

Eu corri mais do que ele, mas era de se esperar. Hover gosta de brincar com as suas vítimas antes do abate. Talvez por causa dos instintos felinos que ele adquiriu durante a gênese e assim, ele me deixava ter aquela esperança efêmera enquanto vinha em meu encalço. Ele sorria, dava pra ver na parte aberta da máscara.

Me distraí em uma das curvas quando tentei olhar para Hover e não o encontrei. Quando olhei pra frente, trombei com um monte de latas de lixo. Dei um rolamento e os latões caíram espalhando fedor de comida azeda e papelão, depois me levantei depressa e continuei correndo. Eu estava chegando ao meu destino e o que mais me preocupava, era que Hover tinha sumido. Numa varredura visual rápida não pude vê-lo nos becos, nos toldos dos apartamentos e nem agarrado nas paredes. Meu coração nunca bateu tão rápido. Eu estava com muito medo e Hover sabia disso. Ele fareja o medo.

Fiquei receoso de continuar e parei, pois ele poderia estar se escondendo em qualquer lugar preparando o momento perfeito para dar o bote. O vazio da noite silenciosa criava uma sinfonia. Ratos guinchando dentro dos bueiros, a panela de pressão chiando numa cozinha, um casal brigando enquanto uma criança chorava. E nenhum sinal de Hover.

Comecei a andar com passos apressados e olhos atentos a cada canto, cada prédio. Era para eu levá-lo até a armadilha, mas senti o jogo virar. O combinado era eu conseguir chegar até o esconderijo e lá, ele iria se foder feio. Eu já estava bem perto, a um quarteirão apenas, e sabia que hover me observava e esperava eu chegar no meu destino. Se é isso que ele queria, eu tinha que dar a ele. Pelo menos era a única chance de eu sair vivo.

Hover era astuto e carismático. Sua imagem rendia cifras exorbitantes aos cofres do governo. O “Gato Negro”, “Vigilante Noturno” e outros títulos de bravura eram dedicados a ele, sendo espalhados pelo povo a cada bandido que ele prendia ou matava diante das câmeras dos telejornais. Na real, era apenas mais um ególatra maldito que via a humanidade como formigas, e a cidade como um formigueiro útil. Sua esposa, Flora Fatal, foi morta no incidente que culminou no exílio e extermínio da minha família, mas nesse dia Hover se safou. Foi a primeira luta direta dos Conversores contra o Domo e nós não estávamos preparados. Protetore, o Ímpar mais poderoso do Novo Rio havia descoberto nossos planos e tivemos que improvisar. A missão era implodir um laboratório secreto da Corsus e, quando fomos pegos com a “boca na botija”, o que restou foi incendiar as câmaras de contenção que mantinham alguns Ímpares presos para estudo, ou para recuperação. Ativamos o modo de emergência que incinerou todas as celas, matando alguns ímpares importantes e outros inocentes. Hover viu Flora Fatal queimar como uma flor de fogo, se deteriorando e soltando esporos luminosos arroxeados como num show de uma rave psicodélica. Desde então ficamos nessa de “gato e rato” (e você sabe quem é quem nessa metáfora). A vitória era algo grandioso demais para que Hover engolisse de uma vez. Não lhe passava pela garganta e por isso, precisava saborear até o último pedacinho.

Dobrei a última esquina e pude ver o Esqueleto: uma construção abandonada que só teve sua estrutura erguida até o quarto andar. Dentro das vigas e pilastras, casebres improvisados com entulhos se amontoavam até o topo, formando um ninho de metal, madeira e conduítes de energia. Como já tinha passado da meia noite, a maioria das pessoas já estava em seus barracos para cumprir o toque de recolher imposto pela milícia local. Mirando de longe, pude ver dois dos nossos agentes dentre a meia dúzia de pessoas que conversavam e bebiam na quadra de futebol. Fiz um sinal com a mão, informando que a presa estava a caminho e ambos se levantaram apressados, jogando no chão suas latinhas de cerveja e coletando fuzis de dentro de uma lata de lixo. Na sequência correram para dentro do Esqueleto.

 — Fogo em Paris!  — Ecoou um grito do alto de um casebre.

Este era o código! Tudo estava saindo conforme o esperado. Em seguida, diversas outras luzes se acenderam, deixando aquela colméia de pequenas casinhas totalmente iluminada, de modo que a quadra parecia estar à luz do dia. Os “clanques” metálicos de muitas e muitas armas de fogo sendo preparadas duraram alguns segundos. Depois, veio o silêncio novamente e todos esperavam a aparição do gatuno.

Um, dois, três minutos e nada. Todos se entreolhavam com aparente indagação. Olhavam para o beco, para os prédios ao redor e nada acontecia. No momento em que alguém bateu palmas lentamente, pensei que Hover tinha resolvido se mostrar. Mas era pior que isso. Do alto, flutuando devagar em direção ao solo, descia Protetore com sua capa vermelha esvoaçante e uniforme negro. Suas mãos brilhantes em uma luminescência vermelha, continuavam a aplaudir com sarcasmo a operação dos Conversores. A cada batida de palmas, faíscas de energia rubra estalavam nas mãos do ímpar.

 — Enfim, o ninho dos ratos. Parabéns, rapaz. Você deu ao Hover mais do que uma vingança fútil.  — Protetore falava com um leve sorriso no canto da boca e seus pés tocaram o chão da quadra.

Hover saiu das sombras de um dos becos e caminhou na minha direção. Fiquei imóvel e pensei na minha família, o que me trouxe mais conforto e alívio. Eu não queria que ele farejasse o meu medo.

Hover parou olhando pra mim, atrás de Protetore. Jofre, um velho guerreiro audaz que já compunha o nosso grupo há mais de dois anos, foi o primeiro a atirar. Ele saiu correndo de dentro de um barraco de madeira tendo como seu alvo Protetore, o mais perigoso, que precisava ser derrubado a qualquer custo. Porém o tiro daquele fuzil nulificador improvisado não conseguiu penetrar o traje de Hipergrafeno do ímpar. Jofre foi incinerado por um feixe vermelho numa fração de segundo, enquanto Protetore só manteve sua mão direita espalmada em sua direção. Depois, a esposa de Jofre saiu correndo em direção à quadra para acudi-lo, mas só pôde segurar em seus braços o esqueleto carbonizado, que se desfez em uma areia negra segundos após ser tocado. Eu vi seus olhos vermelhos de tristeza e ódio e pude prever o que ela faria. Impedi-na de ir na direção de Protetore e ela aceitou se aconchegando no meu abraço. Depois caminhou de volta para o Esqueleto, mas ao passar pelos restos mortais de Jofre, pegou sua arma e se virou para atirar.

 — NÃO!  — Gritei, tarde demais. Antes do disparo, Protetore voou até ela, tão rápido que pareceu se teleportar e parou flutuando, suspendendo a mulher pelo pescoço.

Uma chuva de disparos vieram dos casebres, todos eles em direção a Protetore. Foda-se a mulher! Ela já estava morta mesmo. Os Conversores disparavam sem dó através do corpo da mulher, perfurando-a para atingir Protetore de qualquer jeito. Os tiros caiam depois de bater no corpo do Ímpar, como se tivessem encontrado uma parede de ferro e salpicavam  o chão da quadra com o tilintar de chumbo quente. 

Os disparos iam diminuindo de intensidade conforme os segundos se passavam. Poderiam ter uns quinze a vinte agentes talvez, que silenciavam seus fuzis ou que começavam a disparar para dentro das casas onde estavam. Curiosamente, observei até o último disparo. Tinha alguém lá dentro. Eu vi uma sombra passeando e abafando as luzes das casas por onde passava. Olhei para o lado e vi que Hover não estava mais na quadra.

Protetore se foi. Os agentes, os moradores, todos morreram. Não sei quanto tempo ainda tenho.

 


Oddcell é um universo de RPG que aborda um planeta Terra em 2048, devastado por uma guerra nuclear sob resquícios de um vírus que transformou pessoas comuns em seres dotados de poderes inimagináveis. Acompanhe o site e fique por dentro das novidades. oddcell.com.br

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