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Galo de Briga

Galo-de-Briga

Nos Ermos é assim: ou você ganha ou você perde. Não dá pra ficar parado. Todo dia é dia de luta e ganhando ou não, você sai com escoriações e arranhões, até quando não aguentar mais. Aquela vida pacata com rotinas empresariais, compras no supermercado uma vez por mês e salário na conta, já não rola faz tempo. Novela das oito, seriados na Netflix e sites de fofoca? Já eram! Agora a gente mata um leão por dia e pode ter certeza, antes das bombas a gente não sabia o que esse ditado significava.

A Internet é para poucos. O Domo tomou conta dos últimos satélites transmissores que existem e usa o monopólio da informação para controlar o gado gordo e inútil que vive dentro dos muros das cidades-estados, sempre trabalhando feito formigas e se lambuzando com as migalhas disfarçadas de conforto. Eu via esse conceito nas batatas fritas de antigamente, que eram feitas de farinha e algumas até tinham um rostinho que sorria pra você antes de ser devorado. Era de se desconfiar até mesmo da própria batata, se você não pudesse tê-la visto crescer desde a semente.

Tudo ainda é falso do lado de dentro dos muros. Até hoje este conceito de controle perdura. A liberdade deixa de ser liberdade quando foge do controle, e se há controle, não é liberdade. Essa bosta filosófica toda e discutida diariamente nos círculos de estudos humanos aqui do vilarejo, mas eu não sirvo pra isso. Os velhos sábios e os intelectuais chamam de “sobrevivência da cultura e do conhecimento”, mas nem mesmo eles acreditam nessa merda, porque aqui na Arena Central é notório como eles se divertem muito mais do que com aquelas conversas chatas e frutas exóticas quando fingem estar numa escola socrática. Aqui na arena é onde o animal de cada homem desperta e tenta engolir o mais fraco como presa.

– João Galo! João Galo! – eles gritam. Aprenderam a proferir meu nome com grande entusiasmo. Um nome que arranca suspiros de homens e mulheres sedentos por um assunto interessante que substitua as antigas novelas, as eleições políticas locais ou mesmo os assuntos enfadonhos repetidos à exaustão pela escola filosófica. Eu olho pra essa arena, pequena, mas importante pra mim, e vejo cada olhar em chamas, cada peito se enchendo de empolgação e cada braço levantado com o punho cerrado profetizando a minha vitória. Desafiantes de diversas partes dos Ermos vêm em busca do prêmio do campeão, que até agora, na trigésima oitava edição mensal da Rinha dos Imperfeitos, só eu pude preservar.

Para mim não é somente um troféu, mas uma forma de defender meu povo e ao mesmo tempo arrecadar fundos para o crescimento da comunidade. Como eu adquiri um braço biomecânico infestado pela cepa vermelha do Emaranhado ninguém sabe, e isso nunca esteve em pauta. O que importa é que a cada corpo que eu derrubo na arena, adquiro dotes em apostas que ajudam a melhorar a vida de mais de mil pessoas livres, que vivem longe dos domínios das máquinas domáticas. Naquele dia a caravana de mercadores havia trazido mais um desafiante, e retornaram para a cidade em busca de mais alguém que pudesse nos oferecer mais uma bolsa cheia de Novo Dólar.

A noite finalmente chegou. A lua prateada banhava a arena, se valendo de um céu tão estrelado que só podia ser visto ali, nas proximidades do Emaranhado. Os refletores dos tetos das pick-ups se acenderam dando o sinal que iniciou a luta. Ele, um homem tão pequeno que não dava graça. Pensei em arrastar a luta para o round dois ou três, só para não decepcionar o meu público. Não foi muito difícil encaixar um cruzado de esquerda na primeira finta. Obviamente o homem sentiu. Seu bigode denso e bem penteado, chegou a ficar amassado quando ele voltou a face novamente para a minha direção, parecendo sorrir. Sim, ele sentiu. Não havia possibilidade alguma de não sentir dor com um soco de meia tonelada na maçã do rosto. As pernas curtas tentaram se fixar no chão enquanto o corpo dele foi arrastado por uns dois metros, mas sem perder a postura de luta, deixando dois rastros retos no chão de terra batida.

A multidão se calou por um instante. Ninguém jamais recebera um soco do braço biomecânico de Galo e saira sorrindo. Porra, era a minha reputação em jogo. Quem era aquele baixinho bigodudo? Seria ele um ímpar? Nós não admitiamos ímpares na arena e um aparelho de medição da célula era usado para garantir o cumprimento desta regra. O que estaria acontecendo então?

Ele avançou na minha direção com passos lentos, caminhando calmamente enquanto sorria. Resolvi acabar logo com aquilo antes que o campeão do vilarejo fosse colocado em cheque. Com a mão direita, preparei a voltagem do braço biomecânico para atuar na potência máxima. O próximo soco certamente faria o baixinho explodir como uma melancia podre.

Senti uma pequena dor de cabeça imediata, quando o sangue do meu corpo foi bombeado para dar potência e sustentação ao braço esquerdo, fazendo-o suportar a descarga cinética do dispositivo biomecânico. Bulbos orgânicos luminosos cresceram e se acenderam como tumores em brasa infestando a casca metálica do aparato. Com o braço tomado por um dínamo de energia, preparei o golpe meio segundo antes da aproximação final do adversário. Sem dó, meu soco atravessou o corpo robusto do homem, ao mesmo tempo em que o separava em pedaços menores que voaram para todos os lados. Pedaços de braço, perna e órgãos sujaram os espectadores, que gritavam em pânico. Apenas a cabeça do homem jazia no chão à minha frente, me olhando, sorrindo. Era como se estivesse me desafiando e me dizendo que eu não poderia vencê-lo. Não daquela forma.

Resolvi então apagar aquele olhar. Como ousa um mero desafiante me olhar desse jeito, ainda que morto e derrotado? Levantei o pé esquerdo no máximo de altura que meu joelho podia aguentar, e pisei com toda a força. Por fim olhei para a plateia e reivindiquei as comemorações da minha vitória. Eu esperava aplausos e gritos insandecidos, mas o que vi foram olhares. E sorrisos. Sim, eles sorriam. Tal qual o desafiante que ignorou todo o meu poder, a plateia sorria. Não havia um só ser humano sequer que mantivesse uma expressão diferente daquele sorriso bobo e olhar fixo no vazio. E foi então que começaram a marchar, calmos e sorridentes na minha direção.

Era eles ou eu. Não tive escolha. Já contei os corpos inúmeras vezes e ainda não encontrei o maldito ímpar que fez com que eu matasse toda a minha comunidade. Exceto pela caravana que partiu daqui em direção ao Novo Rio. Eu vou encontrá-los.


Oddcell é um universo de RPG que aborda um planeta Terra em 2048, devastado por uma guerra nuclear sob resquícios de um vírus que transformou pessoas comuns em seres dotados de poderes inimagináveis. Acompanhe o site e fique por dentro das novidades. oddcell.com.br

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