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Exílio no Forte Sangue

exilio no forte sangue Blog

Antes de tudo, eu era mais forte. Eu sentia medo, sentia dor. Sentia receio de não voltar pra casa, ou retornar para um lar destruído e chorar a perda de quem eu amo. Eu tinha alguém por quem retornar. Tinha uma esposa, um cachorro e uma mercearia. Dívidas, quem não as tinha na cidade do Forte Sangue?

Eu não queria lutar. Nem contra os soldados que vinham todos os dias para me fazer aceitar o acordo. Um shopping de produtos bioquímicos estava para ser construído no quarteirão, e eu fui o único proprietário que não abriu mão de seu imóvel. A proposta até que era interessante, mas a mercearia foi herança dos meus pais e levava o nome da família Carvalho. Além de tudo, eu nunca fui a favor de deixar a Corsus invadir a cidade com sua promessa de saúde e bem-estar. 

O povo do Forte Sangue estava cético quanto à vinda da mega empresa para a cidade. Com a guerra contra os Exos, muitos soldados retornavam com sérias sequelas, ou não retornavam. A promessa da Corsus de trazer tecnologia médica a preços acessíveis seduziu até o Comando Maior da cidade, que abriu as portas para o Domo indo contra o povo e contra tantos protestos e manifestações populares. Já vivíamos uma guerra intensa contra uma raça biologicamente modificada pelo Emaranhado e não precisávamos criar dívidas com o governo mundial em troca de saúde e armas. Afinal, se o Domo não erradicou o Emaranhado até hoje, o que de tão extraordinário poderiam fazer por nós?

Eu chorei quando recebi a notificação do alistamento compulsório. Num misto de ódio e tristeza, pude ver claramente os planos do Comando Maior na forma da assinatura do chanceler. Por que alguém tão importante iria assinar autorização de alistamento de um zé ninguém como eu? Olhei para Queila, minha esposa, e choramos juntos. Eu sabia que não voltaria e que minha mercearia seria demolida.

Não passei por muitos treinamentos que me preparassem para o campo de batalha, mas eu sabia atirar. Na primeira delegação, integrei um pequeno grupo de reconhecimento que tinha a missão de localizar um ninho de exocrânios no meio da mata rasa. Eram eu e mais três soldados, também novatos. Localizamos uma fábrica abandonada no ponto identificado do mapa. Era só armar o drone e esperar que ele enviasse as imagens de escaneamento digital para a base.

Ainda dava pra ouvir algumas hélices de antigas máquinas girando ao movimento do vento quente da floresta. O ranger de metal contra metal denunciava uma estrutura velha e enferrujada. Embora bem grande, a antiga fábrica estava coberta pela vegetação mutante, com raízes imensas que em algum momento tentaram perfurar as paredes e encontraram passagem somente nas janelas e vidraças das clarabóias. A vegetação se torcia atravessando a construção por todos os lados, produzindo bulbos pulsantes avermelhados que pareciam tumores ou verrugas gigantes. Os poucos raios de luz solar que entravam pelas frestas da vegetação, batiam contra os bulbos revelando no contraste de sua fina pele, silhuetas de corpos humanos boiando dentro de um líquido viscoso. 

Precisávamos ser rápidos. O medo me fazia ouvir o barulho do líquido borbulhando dentro dos bulbos como se eu estivesse imaginando coisas. Ou talvez o silêncio da floresta fosse tão perturbador que podíamos ouvir até mesmo a respiração uns dos outros. Cada passo floresta adentro arriscava despertar as raízes, que não hesitaram em expelir aqueles espécimes de exos bioaumentados para tentar nos matar.

Nos aproximando encontramos uma trilha. Da ribanceira onde estávamos, pudemos ver que o caminho levava direto até a porta principal da fábrica, o que nos facilitaria a incursão. Por ali descemos com cuidado para não escorregarmos. Bem à frente do grupo, o soldado com um número 189 estampado na nuca do capacete foi o primeiro a pisar em solo regular, a poucos metros do enorme portão de metal vermelho. Ele olhou ao redor e em seguida, com a mão direita no fuzil, levantou a esquerda e sinalizou “área segura”. Enquanto descíamos, 189 deu mais dois passos antes que uma explosão intensa despedaçasse a metade inferior do seu corpo, me obrigando a desviar rapidamente de seu coturno que voou como um míssil na direção do grupo.

— É uma armadilha! — Gritou desesperadamente o soldado 190 que descia logo à minha frente. Rapidamente nos pusemos em formação anti-cerco apontando nossas armas para todos os lados. Novamente olhei para os bulbos que pendulavam acima de nós, e concluí que se eles não estouraram com o barulho e impacto da explosão, provavelmente o Emaranhado não precisará deles. É claro. A mata já está contando com uma cacetada de soldados exocrânios nos cercando.

Lentamente foram se revelando cada vez mais e mais exos saídos da mata densa. Com uma carapaça óssea cobrindo a cabeça, o restante de seus corpos eram compostos por carne retorcida que se mesclava com equipamentos militares e com suas armas. Eu nunca tinha visto um deles tão de perto. Minhas mãos tremiam. Meus dedos, assim como meu corpo, travaram e eu não consegui desferir nem um tiro sequer. Também não consegui correr. 

Uma chuva de tiros vinda de todos os lados caiu sobre a equipe. Dos telhados da fábrica, de trincheiras escondidas no chão, por trás de árvores e arbustos. Eram muitas e muitas dezenas deles. Com o primeiro tiro que me atingiu no peito eu caí e abracei o chão como se fosse meu último amigo, me desejando um “adeus” frio e desesperado antes que eu partisse. Pude ver os corpos despedaçados do 190, e do 191 se espalhando pelo chão, tamanha a crueldade daqueles mutantes que atiravam até não restar mais nada de seus alvos.

Se eu ainda estava vivo? Não sabia. Eu não senti mais o meu corpo até meus olhos se fecharem, quando também não senti dor. Somente um formigamento esquisito na base da espinha, que subiu até a nuca e se espalhou pela minha cabeça. Era o vírus querendo sobreviver a qualquer custo, torrando meu DNA e reprogramando o sistema biológico para me tornar capaz de sobreviver, capaz de ser um hospedeiro melhor para ele. Aí veio o choque que percorreu todo o meu corpo como se me dissesse “levanta e luta, filho da puta”.

De volta à cidade, joguei o drone no chão e tive o prazer de dizer as palavras “missão cumprida” na frente do chanceler, enquanto os soldados me olhavam embasbacados. Não sei se as expressões de espanto eram por eu ter retornado vivo, ou por eu estar banhado em sangue de exos como se tivesse nadado numa banheira macabra de entranhas.

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Oddcell é um universo de RPG que aborda um planeta Terra em 2048, devastado por uma guerra nuclear sob resquícios de um vírus que transformou pessoas comuns em seres dotados de poderes inimagináveis. Acompanhe o site e fique por dentro das novidades. oddcell.com.br

 

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