Parecia uma noite comum naquele canto abandonado da cidade. Um vento frio sibilava por entre os becos escuros, carregando o farfalhar de folhas de papel e o tilintar de latas de cerveja entre os amontoados de lixo. “Parece uma sinfonia”, pensou ele.
Cada vez mais trôpego, o homem caminhava vacilante pelas ruas, desviando de carcaças de carros carbonizados e se escorando em tudo o que lhe servia de apoio. O esforço para se lembrar dos eventos mais recentes faziam doer sua cabeça e por isso, ele preferia nem pensar em nada. Apenas seguia seu instinto de caminhar para o sul da cidade, disposto a passar por cima de qualquer obstáculo que se apresentasse. Alguns pensamentos lhe procuravam abruptamente, trazendo nomes de ruas, de objetos, de pessoas. Até seu próprio nome foi lembrado desta forma: Jacó. E estranhamente ele soube. Era como se uma voz lhe chamasse com o dedo indicador, de forma suave e sedutora, fazendo uma proposta irrecusável e instintiva de acasalamento animal.
“O dorso”. Esta era a palavra mais repetida em seus pensamentos, mas ela não fazia sentido algum. Não que tudo o que estivesse acontecendo fizesse. Jacó parou no meio da rua escura, os pés descalços anestesiados sobre o asfalto molhado que refletia a lua nova. Acompanhou o reflexo e olhou para cima, encarando um céu iluminado mais vivo do que ele próprio. Um barulho o fez olhar para frente, ou para o que restou da Pizzaria Magda’s. O local fazia parte de um turbilhão de lembranças mal acabadas, como fragmentos de vidas que ele não vivera. Ele tentou sorrir, mas seu rosto era uma máscara inerte. Quando conseguiu mover o canto dos lábios, a sensação foi estranha, quase mecânica, um teste de algo que deveria ser natural. Com movimentos rápidos e duros sua cabeça virou para os lados várias vezes, com os olhos à procura e as narinas farejando. Ele viu Stephanie saindo da pizzaria pela vitrine quebrada. Ela não se importou com os obstáculos para caminhar até Jacó. Não ligou para o vidro rasgando sua coxa e nem para os cacos no chão que lhe perfuravam os pés. A pele arroxeada estava quase se rompendo no rosto, e o tufo de cabelo que se alongava do alto da cabeça era tudo que restou da bela cabeleira ruiva de anos atrás. Mas no fim, era a Stephanie, bela como sempre. Jacó a reconheceu com uma inquietante normalidade. “Dorso” ele pensou, e continuou a caminhar enquanto Stephanie o seguia.
Ao longo do caminho, alguns outros se juntaram a Jacó. Esmagada por uma tonelada de escombros, Carine teve força suficiente para se livrar de sua prisão e se juntar à caminhada, arrastando a perna esquerda retorcida e multi fraturada. “Dorso”. Maurício, que estava caído no meio fio, ainda carregava sua gravata rota presa ao pescoço e fitou Jacó com seus olhos fundos e hemorrágicos antes de segui-lo. “Dorso”. Julio! O enorme Julio que por vezes era chamado Julião, tamanha a sua força física, carregava um facão enterrado no crânio, tão fundo, que quase não dava para ver a lâmina. “Dorso”.
Tantos rostos conhecidos se juntavam à marcha, tantas histórias e tantas vidas que pareciam uma só. Todos eram Jacó e Jacó era todos. Suas mentes se entrelaçavam em uma odisséia de sentimentos e sensações, todos indecifráveis mas tão visíveis que pareciam lhe virar do avesso. Somente o “dorso” lhe parecia pessoal, particular e tão intransferível quanto a agulha de uma seringa, ou como um espéculo que revela seu íntimo.
Jacó seguiu no meio de mais de uma centena de caminhantes durante duas noites. Naquele ponto do trajeto a paisagem devastada da cidade começou a mudar, invadida por longas raízes avermelhadas que, quanto mais eles caminhavam para o sul, mais espessas se tornavam. Por vezes notava-se que se contorceram para passar por dentro de prédios, furando janelas e concreto que estivessem no caminho. Árvores de tronco escuro como cascas de sangue coagulado vinham do chão, e tinham estourando o concreto como se fosse de porcelana. A mata avermelhada se fazia cada vez mais presente e mais densa, chegando a engolir completamente a cidade a partir de certo ponto.
“Dorso”. Enquanto caminhavam mata adentro, Jacó observou com profundidade a exuberância da vegetação. Tudo parecia tão lindo. As raias escuras que planam pelas copas das árvores. As macieiras de caule branco com protuberâncias ósseas. Os bulbos bioluminescentes presos ao chão, que abrigavam milhares de larvas em formação. Os frutos suculentos como fígados que brotavam das pontas dos galhos de uma árvore.
Jacó tropeçou em uma pedra branca e quitinosa e caiu de joelhos à beira de um lago. A água vermelha e borbulhante tremia devagar enquanto ele fitava seu próprio rosto no reflexo. Ele sorriu, finalmente sorriu. Conseguiu controlar seu corpo induzindo um largo sorriso trêmulo, que não foi acompanhado pelo olhar. Apenas um movimento dos lábios que colocaram os dentes à mostra, sem emoção. Jacó passou suavemente a mão pelo rosto e percebeu sua pele ressecada e repuxada, as maçãs protuberantes e os olhos fundos quase perdidos num buraco vazio e escuro. “Dorso”.
Ainda de joelhos, Jacó se jogou para trás e deitou no chão, deixando seu corpo pesar sobre o monte de folhas e terra escura. Stephanie, Carine, Maurício, Julio. Todos os outros estavam confortáveis. Talvez não tanto como ele, mas ainda assim confortáveis. Aquelas faces com olhos revirados e um sorriso bobo, umas desaparecendo nos caules das árvores e outras tragadas pela terra úmida. As raízes eram como fios que os conectavam, sugando tudo de útil dos corpos e suprindo uma única vida maior.
Quem eram? Jacó não sabia de fato, mas gostaria de tê-los conhecido. Tamanho sentimento fazia acelerar seus batimentos cardíacos como um desfibrilador, numa espécie de amor puro e único que o traria para o ventre materno junto com seus irmãos.
Do lago emergiu algo grande, lentamente, revelando uma aglomeração pulsante de vidas que não sabiam que haviam terminado. Coberta pelas águas rubras e viscosas, o monstruoso corpo exibia partes mal acabadas em um amálgama de partes humanas, misturadas e modeladas como argila fresca. Os muitos olhos piscando assíncronos ao redor da cabeça, mostravam certa consciência, ou curiosidade, ou receio. Era difícil dizer. O Abrupto não estava pronto, e vinha buscar a última peça que lhe faltava: a medula.
Jacó queria chorar, sem saber se por felicidade ou dor, mas não conseguiu uma só lágrima antes que seus olhos se fechassem.
Oddcell é um universo de RPG que aborda um planeta Terra em 2048, devastado por uma guerra nuclear sob resquícios de um vírus que transformou pessoas comuns em seres dotados de poderes inimagináveis. Acompanhe o site e fique por dentro das novidades. oddcell.com.br