A poeira avermelhada enturvava a visão fazendo com que precisássemos ligar os faróis do carro mesmo estando de dia. A região do Jardim Palmares foi uma das que receberam uma chuva de areia quando as bombas estouraram, deixando uma extensão de quilômetros quase submersa com dois palmos e meio de terra vermelha. Durante alguns poucos anos fora impossível respirar por aqui, pois a atmosfera se tornou nociva, com ventos rodopiantes que moviam tempestades de areia e um oxigênio carregado e pesado, que parecia transformar seus pulmões em um saco de areia em questão de minutos. Hoje, apenas terra batida e prédios abandonados. Nada mais.
Mateus estava ao volante com um olhar vidrado e fixo no trajeto a frente e não parecia nem mesmo piscar. Os olhos arregalados e ombros tensos me chamavam atenção, além da sudorese escorrendo da tez suja de quem não consegue tomar banho há dias. Um cigarro torto pendia entre seus lábios, consumido por uma ponta de cinza que quase chegava à metade. Pensei em despertá-lo daquele transe sinistro movimentando minha mão diante de seu olhar, mas ao invés disso, resolvi pegar o cigarro e dar uns tragos para aliviar a tensão, já que o filho da puta estava tão atento ao caminho da estrada que só estava deixando o fumo queimar sozinho.
— Esse cigarro é original, Mateus. Os caras plantam o Fumo no Recôncavo Baiano, têm o trabalho de contrabandear a porra toda por fora dos muros, Enfrentam a porra do Emaranhado, comem o pão que o diabo amassou, pra chegar aqui e você deixar o bagulho queimar sem fumar? Dá pra cá essa merda que eu fumo sozinha então. — No movimento brusco, deixei a cinza cair sobre o banco de couro do meu Corcel 75. Trinquei os dentes e olhei lentamente pro Mateus, mergulhada em devaneios homicidas enquanto meus olhos apertados sugeriam o teor das intenções.
— Desculpa, Erica. É que o batedor já passou por nós tem alguns minutos e eu não escuto mais o som da motoca. — Retruca Mateus esfregando os olhos vermelhos e lacrimejantes devido à poeira que entrava pelas frestas das janelas do carro.
— Com essa poeira toda levantando, Mateus, você acha o que? Que o motoca caiu? Que se esborrachou por aí e a gente não viu? Se isso tivesse acontecido, os frenéticos teriam parado de correr atrás da moto e nós já teríamos atropelado uma penca deles.
— Tem razão. Mas é que…
Mateus não teve tempo de terminar sua fala antes que o carro passasse por cima de um corpo, como se investisse contra um quebra-molas a mais de 100 km/h. O obstáculo inesperado surgiu do meio da fumaça e uma tentativa desesperada de desviar fez com que Mateus perdesse um pouco do controle, mas estabelecendo-se em seguida e retomando a velocidade.
— Era ele? Era o Sócrates? — Pergunta Mateus com respiração ofegante.
— Não. Eu acho que era apenas um frenético. Sócrates deve ter começado a atirar neles. — Respondi.
Abri o vidro do carona e pus minha cabeça para fora do carro para averiguar a lataria. Meu rosto e meu couro cabeludo se encheram de poeira enquanto eu tentava enxergar a fuselagem e, quando validei a integridade do material, voltei o corpo para dentro do carro e limpei a cabeça com um pano. Não ter cabelos sempre me foi cômodo e agora, com a porra do mundo todo fodido, passou a ser muito mais do que estilo. A falta de cabelos te faz os vilões parecerem mais cruéis, saca? Vi isso num seriado de zumbi.
— Não vai perguntar se eu estou bem? Só se importa com a merda desse carro? — Me indagou Mateus ainda ofegante, mas com a voz trêmula, quase se arrependendo de ter feito o comentário infeliz. Certamente ele esperava um soco no queixo ou um xingamento em alto e bom som, mas eu não queria que perdesse a concentração.
— Quero é que você se foda, mas só depois de passar pelo Corredor de Chernobyl e me deixar em casa, sã e salva, beleza? — Respondi em tom de ironia finalizando com um beijinho lançado ao vento.
Outro corpo caído na estrada, só que dessa vez Mateus estava atento e conseguiu desviar rapidamente. O cabra era um frouxo, mas dirigia bem. Era o melhor piloto que tínhamos no grupo. Eu achava que ele tinha uma quedinha por mim, mas o ignorava. Pra mim era apenas aquele lance de amor platônico ou uma admiração excessiva pela figura da líder. Ou os dois ao mesmo tempo. Eu não tava nem aí e nunca dei a mínima pra isso. Eu queria mesmo é que ele se apaixonasse pelo meu carro e cuidasse muito bem dele. Aquele lindo Corcel caramelo de 1975 me dava sorte desde o dia em que eu o encontrei, preso debaixo dos escombros de uma casa abandonada. Levei quase uma semana retirando pedra sobre pedra pra não danificar a pintura, que estava intacta por causa de uma viga que parou a poucos metros do teto do carro criando uma espécie de cabana. O carro estava destinado a mim e me esperando.
Mais um corpo na estrada. Dessa vez, trajando uma jaqueta preta e capacete. Merda. Eles tinham derrubado o Sócrates. Mateus arregalou os olhos na minha direção enquanto tentava manter a direção estável. Eu olhava para ele e sabia que não deveria ter colocado um cabra tão desequilibrado na equipe. Talvez se fosse outro, mesmo não dirigindo tão bem quanto Mateus, tivesse a frieza para manter a calma e perceber a moto que aparecera na estrada em seguida ao corpo de Sócrates.
A porrada foi feia. Além de ter detonado o para-choque do meu carro o maldito ainda rodopiou na estrada de terra. Me lembro de tudo em câmera lenta, a porta do lado carona empurrada para dentro e batendo no meu tórax quando o veículo foi amortecido pelo poste. Várias fraturas na costela e talvez no baço. Estilhaços de vidro salpicando tudo como uma chuva de granizo. Eu me segurando no putaquepariu do carro e a cabeça do Mateus estourando o vidro da janela lateral.
Não demorou para que eles aparecessem de todos os lados. Porra, eram muitos e era por isso que aquela estrada foi apelidada de “Corredor de Chernobyl”. Tinham muitos prédios abandonados ao redor e dava pra ver os frenéticos pulando dos andares pra nos alcançar, muitos até estourando os ligamentos e fraturando as canelas, mas eles nunca paravam. Não dava pra eu correr deles porque os malditos não se cansam. Consegui me esconder debaixo do carro e escutar os últimos gritos do Mateus chamando pelo meu nome enquanto os frenéticos batiam, rasgavam, dilaceravam. A vida de Mateus escorria pela lataria do meu Corcel 75 e pingava bem na minha frente. Não bastou destruir meu carro e pra completar, tinha que sujar a a pintura.
Será que tem conserto?
Oddcell é um universo de RPG que aborda um planeta Terra em 2048, devastado por uma guerra nuclear sob resquícios de um vírus que transformou pessoas comuns em seres dotados de poderes inimagináveis. Acompanhe o site e fique por dentro das novidades. oddcell.com.br