As águas do Oceano Índico brilhavam com um misto de tonalidades oscilantes entre o laranja do pôr do sol e o vermelho-sangue das auroras boreais radioativas. As ondas pareciam camaleões, mudando de cor enquanto deslizavam sobre o mar, trazendo o reflexo das cortinas boreais. Akin olhava o horizonte vacilando entre o vislumbre do céu nuclear e a tentativa de encontrar terra firme. Sua embarcação: um latão improvisado dividido por um corte vertical e fundido com algumas outras partes metálicas entre peças automotivas e outras quinquilharias. A mutação do vírus havia lhe conferido a habilidade de derreter metais com um simples toque.
— Cortina-de-sangue é como eles chamam, né? — Fayola assentiu com a cabeça respondendo silenciosamente à pergunta de Akin, que parecia querer puxar assunto para que sua noiva não pegasse no sono. — Deve ser daí que o Domo puxou a ideia de colocar vermelho em tudo. — continuou Akin. O barco deslizava de modo um pouco mais brusco, subindo e descendo sobre cada onda que passava enquanto se aproximava da maior ilha do arquipélago de Comores.
— Já estamos chegando? Eu estou vendo as árvores lá no fundo, mas você não anunciou “terra à vista”. — Brincou Fayola.
— Estou tentando me certificar se estamos mesmo chegando em Comores. Não quero te dar falsas esperanças novamente. — Diz Akin buscando o horizonte com olhos apertados, tentando focalizar os minúsculos pontos que se aproximavam mais a cada minuto. Pareciam mesmo as palmeiras gigantescas da ilha, e a esperança lhe permitiu esboçar um leve sorriso antes de virar-se para dar a notícia a Fayola.
Preferia pensar que a imagem da sua amada não era tão ruim, para não encarar o fato de que ela estava péssima. Fayola gemia em voz baixa para não desesperar Akin, revirando-se no pequeno espaço do latão. Suas alucinações tornavam-se mais frequentes durante a noite, quando acordava criando situações fantasiosas onde agredia Akin com palavras duras, potencializando fatos e questionamentos pessoais que machucaram o relacionamento do casal em tempos passados. Akin temia o momento em que Fayola não o reconhecesse mais.
— Lembra-se quando costumávamos passear pela feira de Mueda? — Ele perguntou tentando trazer à tona uma lembrança feliz, para testar a sanidade de sua Noiva.
Fayola levantou o olhar até ele e esboçou um sorriso com esforço, tentando suprimir a dor. — As flores da casa de madeira eram tão cheirosas. Como se chamavam?
— Ylang Ylang. — Respondeu Akin. — Combinavam com o vestido que você vai usar no nosso casamento.
Os olhos de Fayola pareceram murchar como uma flor arrancada do ramo. Ela virou de costas para Akin, se acomodou no canto do latão e ajeitou os cabelos, aproveitando para secar o suor febril que escorria na testa. — Não sei se ainda vamos nos casar.
— Como não sabe, meu amor? — Diz Akin — Estamos juntos neste barco tentando chegar a Comores. Eles têm a cura do Frenesi por lá. A ONU instalou o mais moderno laboratório na ilha pra ficar longe dos focos da doença, longe dos imigrantes e curiosos. Já tivemos todas as provas que podíamos de que esta informação é quente, e você ainda tá duvidando?
— Não fala assim comigo, Akin! Você sabe que estou nervosa e que estou tentando controlar o meu humor. Você está querendo me matar? Quer que eu me torne um frenético e parta pra cima de você?
Akin tenta argumentar em sua própria defesa, mas sua boca treme emudecida, não encontrando as palavras certas e temendo agravar a situação.
— Me desculpe. Ele diz suspirando e virando-se para fitar novamente o horizonte.
Qualquer conversa mais acalorada poderia virar uma chave no cérebro de Fayola e fazer com que ela entrasse no estágio final da doença, culminando em uma cólera irracional sem volta. Akin atribuía isso ao Domo. Toda essa merda, toda essa destruição e loucura. Ele pensava que provavelmente o novo governo mundial estava mais interessado em ocupar as fábricas dos grandes polos industriais para que toda a fumaça e poluição ajudassem a destruir a vegetação mutante. Enquanto isso fabricavam o novo modo de vida da população mundial. Diante de toda a situação, lhe parecia bastante razoável que, se houvesse restado algum resquício do governo antigo, eles se reuniriam num lugar pobre e esquecido por Deus como o arquipélago de Comores para não serem incomodados até que pudessem revidar.
Ele se agachou até ela, a abraçou e sentiu o calor febril do seu corpo. — Estamos chegando, Fayola. E vai ficar tudo bem.
A imagem das copas das palmeiras estava mais perto. Elas pareciam mais numerosas a partir dali. Cada vez mais e mais delas apareciam ao sabor do anoitecer, enquanto um luar jamais possível em outras épocas, iluminava as águas e as areias da ilha com reflexos quase cegantes. A cortina-de-sangue havia perdido um pouco de sua força, mas ainda podia ser vista a olho nu, se escondendo por trás do horizonte arbóreo.
Segundo informações, o forte citado nas comunicações de rádio se situava no topo de um enorme morro, que foi identificado por Akin desde lá de baixo ao se aproximarem da praia. Akin acelerou o barco improvisado, usando seu poder para moldar as velas de alumínio com as próprias mãos, embalando a embarcação nos ventos suaves da orla. O frescor do clima era contaminado por cheiro de fumaça e pouco a pouco os resíduos de fuligem choviam sobre eles quanto mais se aproximavam da faixa de areia, onde alguns soldados vagavam sem rumo, desarmados e divagantes, até os avistarem.
Não deu tempo de atracar. Frenéticos ensandecidos por sua ira correram em direção ao barco de latão enquanto Akin arrancava a vela do veículo e a moldava em formato de um grande escudo. Com ele encaixado perfeitamente em seu punho, fez um habilidoso movimento em arco cortando um frenético na altura do peito e decapitando o segundo com o mesmo golpe. Enquanto se preparava para os outros três que corriam na sua direção, Akin passou os dedos da outra mão pela borda do escudo, afiando-o como uma lâmina em brasa. O metal derretia ao seu menor toque, assumindo a forma exata em que Akin o moldara.
Com os olhos vermelhos explodindo em fúria, outro frenético trajado em vestes militares saltou sobre Akin, que desviou do ataque com uma cambalhota passando por baixo do atacante, finalizando com o escudo cravado em seu peito. Os outros esbravejavam com gritos guturais, enquanto tentavam atacar o viajante que desferiu golpes acrobáticos com seu escudo improvisado. No fim, um toque em seu ombro direito fez Akin se virar bruscamente, tentando desvencilhar-se do inesperado para golpear de frente.
Era Fayola. Ele conseguiu parar com o escudo a centímetros da jugular de sua amada antes que, no furor da luta, acertasse o golpe fatal. Fayola estava com os olhos vermelhos, tão inflamados quanto os olhos dos frenéticos que Akin acabara de matar. Seus lábios, tão lindamente grossos e perfeitos, tentavam lhe dizer algo. Eles tremiam, em desalinho com os olhos vagos e vazios, aqueles que os banhavam em lágrimas dando um sabor salgado às suas últimas palavras.
— Eu te amo, Akin. Me perdoe.
Oddcell é um universo de RPG que aborda um planeta Terra em 2048, devastado por uma guerra nuclear sob resquícios de um vírus que transformou pessoas comuns em seres dotados de poderes inimagináveis. Acompanhe o site e fique por dentro das novidades. oddcell.com.br