Eu estava ao volante do caminhão de água, roncando pela estrada poeirenta que levava à fazenda onde Mattia mantinha tudo sob controle. O sol batia forte, e mesmo através dos vidros fechados, o calor era um personagem raro de um dia quente em Owego. O termômetro marcava 32º, e tudo que eu queria era descarregar logo a carga e voltar pra casa.
Mattia estava lá. Um paisano que, mesmo no meio de uma colheita, exibia seu terno branco, mesmo com as barras das calças manchadas de terra e os sapatos italianos cobertos de lama. O cordão de ouro balançava fora do peito do paletó, refletindo os raios do sol a cada golpe de enxada. Era facilmente identificado como o chefe “mão-na-massa” entre os associados.
Eu queria agradá-lo. Dentro do caminhão tinha uma única caixa de água Berg em meio às marcas comuns. Os patrões gostavam da Berg porque vinha dos icebergs da putaquepariu e também porque era cara e o Mattia curtia uma coisa fina. Mattia era um cara de respeito. Um dos braços mais respeitados do Dom, matava um homem como se matasse uma barata. Era implacável e adorado pelos seus associados por dar valor àqueles que se mostravam leais.
— Olá, chefe — saudei, oferecendo a garrafa fodona.
Mattia a agarrou como se fosse um oásis, bebendo com goladas fortes. Sua gratidão veio em forma de um aceno de cabeça respeitoso, o máximo que se podia esperar de alguém como ele. Senti um certo orgulho porque aquilo era um reconhecimento.
Enquanto ele bebia, ao lado dele notei um babbo, magro, com uma camisa florida, suando em bicas de tanto cavar a terra com a pá. Não era um trabalho comum de fazenda, era evidente. Eles estavam cavando um buraco profundo no meio da plantação de cenoura. Vi umas bolsas de viagem ao lado do magricela, sujas de cimento seco e umas entreabertas onde se via um montão de dinheiro vivo. Eram uns patacos de dólares enrolados com aqueles plásticos-filme que usam para embalar as coisas como malas, presuntos, dinheiro, e coisas do tipo. O restante do povo ao redor parecia não se importar, como se não notassem todo aquele dinheiro ou fingiram não ver, para não serem acusados de conhecer a localização da fortuna depois que eles a enterrassem. Então, eu também parei de olhar.
— Mais alguma coisa, Mexicano? — Me perguntou Mattia após secar os lábios com o dorso da mão.
— Não, chefe. Só vim descarregar o caminhão de água ali no depósito. Já estou de saída.
Voltei ao caminhão, chamando dois seguranças para ajudar no descarregamento. O caminhão engasgou na partida. O ronco intermitente do motor estourou três vezes até aquela geringonça funcionar e quando começou a andar, notei que um dos estouros não era do motor.
O magricela que cavava o buraco tombou para dentro dele, quando um tiro certeiro na nuca o mandou pro inferno. O choque paralisou a todos por um segundo. Depois, a tia que varria passou a varrer mais rápido, os caras que colhiam cenouras fixaram os olhos no chão, e o coroa que consertava o telhado do estábulo quase caiu com o susto, mas voltou a martelar.
Somente Mattia pareceu não se abalar. Enquanto eu aproximava a traseira do caminhão da entrada do armazém, Mattia virava-se pra trás em câmera lenta, parecendo saber de onde (ou por que) foi efetuado o disparo. Ele cruza seu olhar com o do Guts, um baixinho folgado que costumava ser enviado pra resolver e executar penas de morte dentro da organização. Era tipo uma corregedoria da máfia, entende? O cara se achava “o tal” por isso. Era arrogante e fedia a perfume barato, embora seus ternos italianos e relógios suíços valessem mais do que a vida de qualquer um que estivesse abaixo dele.
O Dinheiro, claro. Ali deu pra entender tudo. Me lembrei que Mattia havia sido pego pela polícia de Manhattan após um assalto a banco aparentemente bem sucedido. Os canas pegaram o time no esconderijo, durante o translado que colocaria a grana na caçamba de um caminhão de cimento. Não sobrou nada. Nem a grana e nem o time. A polícia apreendeu tudo e Somente o Mattia conseguiu fugir.
Mas o Don era piedoso demais para executar a sangue frio um dos seus braços mais importantes, mesmo ele sendo um traíra. Mattia era como um filho no colo do Don, um exemplo entre a Família e um deus idolatrado entre os funcionários. Ele não merecia um tiro na nuca como levou o magricela. Talvez ele fosse julgado, ou talvez o Guts fosse dar-lhe um sermão daqueles em frente aos funcionários antes de disparar um tiro derradeiro, no meio dos olhos. Não dava pra saber o que estaria por vir, mas estranhamente, os dois continuaram se observando sem mover um músculo sequer.
Guts estreitava o olhar, como se quisesse procurar com mais afinco algum detalhe. Seus olhos apontavam para a cabeça de Mattia e parecia percorrer os olhos, garganta e boca. O que ele estava esperando?
Olhei para Mattia procurando encontrar a mesma coisa que Guts buscava em seu rosto suado e brilhante. Por um momento pensei ter visto Mattia vacilar e dar um passo atrás tentando ficar de pé. Sim, ele era forte demais para cair assim tão facilmente. Do canto da boca escorreu o primeiro filete de um líquido branco, que se avolumou até que ele tossisse. A espuma vazou enquanto o sangue escorria do nariz e orelhas, mas ele estava de pé. Ele era a porra do Mattia e não cairia tão fácil assim. Até que segundos depois, finalmente tombou.
Guts sorriu. Virou-se de costas e caminhou na direção do seu Mustang Boss 302. Antes de entrar, limpou a sola do sapato no pneu do carro e cuspiu no chão, proferindo uma palavra que pareceu um xingamento. “Traidor”, Eu pude ler seus lábios. Os dois seguranças de Guts coletaram as bolsas e voltaram para o carro, que depois arrancou em direção à porteira da fazenda.
Toda a equipe de associados continuou seu trabalho como se nada tivesse acontecido, como se não houvesse dois corpos caídos dentro de um buraco na lavoura. Um fazendeiro começou a jogar a terra de volta pra dentro do buraco e os corpos foram desaparecendo aos poucos.
Eu estiquei o braço pra dentro do caminhão e só restava uma caixa de água na caçamba. Com sede, peguei uma garrafa, retirei a tampa e observei a cena.
— Mexicano. Já descarregamos tudo, só sobrou essa caixa de Berg aí. Essa não tá na listagem. — O homem ainda cansado havia empilhado toda a carga de garrafas d’água dentro do armazém, e falava comigo conferindo uma planilha numa prancheta.
— Porra, Don — Pensei. — Você nunca suja suas mãos.
De uma forma ou de outra, querendo ou não, sabendo ou não, qualquer um pode acabar fazendo o trabalho sujo. Só não esperava que fosse um terno vazio como eu.
Entreguei a caixa de Berg nas mãos do associado e ordenei. — Joga essa porra fora.
Este conto é baseado em Wiseguys, um cenário de RPG para Savage Worlds que aborda a vida do crime organizado. Alguns dos termos e jargões encontrados neste texto fazem parte do livro. Acompanhe e participe do financiamento coletivo de Wiseguys clicando no botão abaixo.