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Caradura

caradura

Na primeira vez que nos encontramos eu era apenas uma menina. Os sonhos em que eu estava na casa de veraneio da família eram tão constantes que eu já conhecia cada cômodo, cada porta e cada janela. Pela vidraça da cozinha dava pra ver o Mar de Cortéz, verde e agitado, onde famílias inteiras de golfinhos pulavam em sincronia como se tivessem me convidando para brincar. Cardume ou manada foi um questionamento que comecei a me fazer aos 11 anos de idade. Nessa época os sonhos começaram a mudar. O sol brilhante do Golfo da Califórnia deu lugar a uma lua prateada, de luz tão intensa que banhava de branco as areias frias da praia. Foi quando o vi pela primeira vez com passos calmos e secos em direção à casa, fitando minha silhueta na janela, embora não tivesse olhos para me ver. Seu rosto vazio parecia enxergar meu medo, meu tremor e cada gota de lágrima que escorregava até minha boca. Salgado era o sabor do pânico.

Eu ouvia passo após passo, espaçados e calmos na direção da casa. Os ventos que encerravam a tarde, anunciavam a noite com uma melodia solene, tocada no tilintar dos penduricalhos presos ao batente da porta. O frio aumentava e não havia cobertor que pudesse aquecer meu corpo. Sentada na cadeira de balanço da vovó, eu me embalava ao som metálico dos penduricalhos. Minha vó dizia que era um “recado dos ventos” mas pareciam tocar uma marcha fúnebre.

Ele quebra o vidro da porta para alcançar a fechadura por dentro. O ranger da madeira tanto na porta quanto nos passos sobre o assoalho anunciam sua entrada. Ouço também o craquelar dos pedaços de vidro, como se sapatos duros sujos de areia os esmigalhassem em mil pedaços. Cada som, cada cheiro e cada coloração era mais vivo aqui do que lá fora, e mesmo estando escuro, dava pra ver uma aura característica ao redor do corpo dele. Era como se não fizesse parte deste mundo, ou só existisse aqui, como uma imagem descolorida se alimentando do ambiente de forma parasitária. Mas o sonho era meu. Ele não deveria estar aqui. E como eu posso fugir daqui se estou presa no meu próprio sonho?

No primeiro golpe eu tentei me defender, mas o machado arrancou meu braço direito como lenha seca. O grito não tinha som e não adiantava pedir por socorro. Meu próprio sangue me denunciava com rastros úmidos e quentes onde quer que eu me escondesse. A única opção era correr.
A cada noite uma fuga, uma reprise, um loop, mas nem sempre eu tinha êxito. Primeiro o braço direito, depois uma perna e assim por diante até o golpe final na cabeça que me fez não mais acordar.

Não posso mais correr e nem tenho motivos pra isso. Ele não pode mais me machucar. Resolvi chamá-lo de Cara-Dura e ele aceitou. Até mesmo gosta do nome e assim se anuncia todos os dias quando vem me visitar. Cantamos juntos, contamos histórias, tomamos chá e ele me assiste sangrar até perder a consciência. Depois vai embora e eu adormeço até o dia seguinte, esperando seu retorno.

Não sei quanto tempo faz, mas não tenho esperanças de acordar. Não ouço mais o pranto da minha mãe e nem a visita das enfermeiras. Talvez já tenham desligado os aparelhos.


Oddcell é um universo de RPG que aborda um planeta Terra em 2048, devastado por uma guerra nuclear sob resquícios de um vírus que transformou pessoas comuns em seres dotados de poderes inimagináveis. Acompanhe o site e fique por dentro das novidades. oddcell.com.br

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