Batismo nas Chamas do Ódio – Conto em Rifts®

batismo nas chamas do odio rifts Blog

Um conto no universo pós-apocalíptico de alta magia e tecnologia de Rifts®,

por Victor H. S. Thomaz

Tolkeen queimava… a outrora magnífica, mágica e bela capital da feitiçaria na América do Norte tinha seus horizontes tingidos de rubro. E suas espiras, cada uma o lar de magos lendários, ruíram com a destruição levada pelos momentos finais do cerco da Coalizão. Nada mais restava, além de levar os remanescentes de seu povo em segurança.

Sim, nem todos em Tolkeen eram feiticeiros inescrupulosos, ou monstros alienígenas convocados por eles, ao contrário do que a máquina de propaganda da CE dizia. Muitos deles, humanos e inumanos, eram apenas residentes e cidadãos que tinham empregos normais, famílias, amigos – tudo destruído pela outra máquina da Coalizão, a máquina de guerra. Mas também, o governo de Tolkeen não era inocente, a Vingança dos Feitiçeiros clamou milhares de vidas de civis dentro da Coalizão de Estados. Demônios nunca antes vistos foram conjurados pelos Deslacodores malígnos que serviam ao reino mágico. Mas nada justificava o que estava acontecendo naquele final de tarde vermelho.

Os Cyber-Cavaleiros enviados por Lorde Coake eram a última linha de esperança e bondade naquela noite. Três deles estavam escoltando os últimos residentes, agora refugiados da cidade arruinada. Eram Sir Roderick, Sir Constantine, e Lady Alessa II. A última, era um claro contraste aos seus pares, já que uma venda de pano escuro cobria seus olhos. A verdade, é que ela não precisava deles, pois as “Mulheres Guerreiras Cegas” Altaras ainda viam o mundo a sua forma, com um “sexto sentido” que as tornavam guerreiras formidáveis e inumanas. 

Os três conseguiram evitar o grosso das patrulhas de soldados da Coalizão, enquanto guiavam uma crescente multidão de indefesos pelos escombros da cidade. Ocasionalmente, tiveram que sacar suas Psi-Espadas para lidar com demônios descontrolados pelas ruas, uma clara consequência da guerra. Mas enfim, eles chegaram até a ponte do Rio Minnesota, onde uma balsa esperava do outro lado para levá-los pelo Rio Mississippi em segurança.

Mas Lady Alessa assustou-se como se estivesse visto um fantasma. Mesmo não tendo olhos funcionais, ela ainda podia ouvir passos que corriam pelas passarelas embaixo da ponte, ela podia sentir o cheiro que se misturava com o da fumaça, seu próprio cheiro. Alguém que não deveria estar ali… sua Sombra.

— Vão à frente e protejam os civis! — gritou ela, enquanto já fazia o seu caminho para a escada.

— É ela, não?! —, disse Sir Constantine com apreensão em seu rosto. Ele se virou para a multidão desolada atrás dele, em seguida para Sir Roderick, o cavaleiro mais jovem que não entendia o que acabou de acontecer.

— Alessa! Não nos deixe agora! Estamos quase chegando!!! — Sir Roderick estava inconformado. Mas a mão de seu mentor Constantine pousou sobre seu ombro. 

— Deixe-a — disse Constantine, — todos nós temos nossa missão a concluir, e ela também. A ponte não é longa, a nossa está quase lá. — Com estas palavras, o cavaleiro que já começava a ter seus primeiros fios de cabelos brancos em sua cabeça devolveu a confiança de seu pupilo.

— Eu espero que ela volte — resmungou Roderick, enquanto via a Lady Alessa descer pela escada que levava até as passarelas abaixo.

. . .

Lady Alessa sentia as reverberações espalhando sobre a estrutura metálica com cada um de seus passos apressados, e ela também sentia os da outra pessoa que estava ali. Sua “Sombra” caminhava até o parapeito com vista privilegiada do rio, que refletia as chamas e a fumaça que engolia o reflexo distorcido da lua, e das Linhas Ley inconstantes. E se escorou nele, como se pudesse apreciar a vista.

— Você se lembra, não? Costumávamos correr e saltar sobre estas passarelas, era ainda mais divertido saber que as outras crianças não podiam nos acompanhar. Muito perigoso para crianças humanas, uma queda no rio pode machucar e até matar —, dizia a figura, que tinha as exatas compleições e voz de Alessa.

— Por que está aqui?! — perguntou Lady Alessa inconformada.

— Apenas para relembrar dos tempos que não vão voltar. Tolkeen, nosso lar arde em chamas, e eu fiz o que pude para defendê-la, lutei nos campos de batalha com morte em todos os lados, experimentei a dor da guerra e da perda, mas não adiantou. O grande inimigo termina o seu trabalho, e a morte da nossa antecessora foi–

— Não. Fale. Dela… — Alessa interrompeu o discurso.

A “Sombra” se virou para Alessa, ela possui as suas feições perfeitamente copiadas, pois ambas são clones de Lady Alessa I, a Filha de Atlantis que encontrou redenção entre os Cyber-Cavaleiros e um novo lar em Tolkeen. Já redimida, ela passou pelo processo natural de auto-replicação que todas as Altaras possuem, criando dois clones perfeitamente iguais. Suas “sucessoras”, ou melhor, suas filhas. Nascidas livres das correntes de Atlantis, mas as memórias desse tempo sombrio ainda eram passadas de criadora para criada. 

A Sombra de Alessa, sua irmã, era uma cópia perfeita de sua criadora, mas ela usava cabelos curtos e soltos, indo até a altura do pescoço, um claro sinal de rebeldia. Enquanto Alessa II tinha cabelos longos e presos por uma única trança amarrada com o resto da venda, assim como sua antecessora, ou melhor, mãe, fazia. Ambas usavam as icônicas vendas escuras, dito isto.

— Por que não? Ela lutou e morreu na guerra contra a Coalizão para defender nosso lar —, respondeu a Sombra.

— Ela lutou na guerra para defender o POVO! Ela não lutou ao lado de demônios e necromantes assim como VOCÊ luta! — Lady Alessa já não controlava mais a sua respiração em sua resposta.

— Provas? Você não tem como saber disso. E mesmo se soubesse, não faria a mínima diferença! Ela… e eu lutamos pelo mesmo fim. E você? Pelo que você luta? Irmã. — A irmã sombria já estava em posição de combate. Faltava apenas desembainhar a sua Psi-Espada, pois mesmo Caída, ela também era uma Cyber-Cavaleira.

Lady Alessa II tocou o corrimão com sua mão esquerda, através dela e dos seus pés, ela sentia as microvibrações no metal que vinham de cima, a procissão estava avançando, ainda que lentamente. — Por eles —, ela respondeu a provocação de sua Sombra e convocou sua lâmina espiritual em sua mão direita. Sua nêmesis fez o mesmo e tão logo saltou em um giro acrobático até sua odiada irmã. 

Lâminas psíquicas se chocaram, Alessa mal conseguiu bloquear o golpe furioso com sua própria Psi-Espada. O choque soou como um trovão seco e a força do impacto fez a passarela tremer. Ambas as lâminas alimentadas pela energia do espírito, uma parte da alma materializada se travaram em um impasse. A de Alessa II, uma espada espectral de forma perfeita vinha de sua disciplina e aderência ao Código, enquanto a de Alessa, a Destruidora era uma flamberge – retorcida e inconstante, que pressionava em direção a sua irmã, com a força de sua ira.

O impasse foi quebrado com uma joelhada no abdômen da irmã sombria, que sem pensar devolveu um soco no rosto de Alessa, fazendo as duas se afastarem, apenas para retornar ao embate com as espadas. Desta vez em uma sucessão selvagem de golpes, aparadas, contra-ataques e defesas. Cabos de metal, vigas, e corrimões eram atingidos pelas lâminas, passando como faca quente em papel e liberando uma nuvem de faíscas a cada impacto.

O campo de luta ficava cada vez mais instável. As passagens estreitas não permitiam movimentos sujos, apenas uma luta frente-a-frente de igual para igual, e nesta luta, Alessa II estava lentamente recuando. Sabendo que tudo o que devia fazer era ganhar tempo, ela se focava em proteger-se da investida brutal de sua irmã, até os refugiados cruzarem a ponte. Mas então, suas costas tocaram um corrimão, ela estava encurralada.

— Não senti convicção em sua resposta, irmã. — A Sombra estava confiante em sua vitória, com sua espada apontada na direção de Alessa II, ela se preparava para o último golpe. Uma corrente solta ao lado, e um salto no último momento para agarrá-la foi a diferença entre a vida e a morte para Alessa. — Você me critica daquilo que faz! — respondeu. — E certamente não veio aqui para apreciar a vista!

— Você está certa! — A irmã sombria sacou sua arma secundária, uma pistola a laser Wilk’s, já que não tinha alcance para atingir sua oponente suspensa na corrente. O flash vermelho saíu de seu cano, e atingiu uma das ligações, a derretendo com o seu calor. Alessa sentiu o tranco, e logo começou a balançar na corrente prestes a cair. Após se concentrar, a Sombra deu o segundo tiro, mas este foi defletido pela Psi-Espada de sua irmã, e tão logo ela dá o terceiro. Este acertou a segunda ligação, e a corrente foi em queda livre ao rio. Mas Lady Alessa deu um segundo salto, aproveitando o impulso do balanço, mal conseguindo se agarrar na outra plataforma.

— Então escolheu o pior momento para tentar me matar! — Lady Alessa reuniu forças para mais um salto transversal e pousou na andaime com os dois pés. Uma gargalhada, esta foi a resposta de sua Sombra, que logo repetiu seu salto anterior de uma plataforma para outra. Uma batalha de movimento começou, com uma troca de golpes ainda mais frenética agora que as duas irmãs corriam e saltavam sobre suportes, passarelas  e corrimões. 

Até que a irmã sombria, parou de perseguir sua presa, jogou fora sua pistola que foi cortada ao meio por um dos golpes da luta, e alcançou a mão em seu bolso novamente. Ela começou a rir. Incessantemente.

— Qual é a graça?! — Tão logo Alessa questionou, ela começou a ouvir:

Bip… Bip… Bip… Bip. Bip. Bip.

— Te matar? — retrucou a sombra quando sua risada se esvaia. — Seria muito simples — diz ela enquanto tirava a mão de seu bolso. Um pequeno controle eletrônico, com um botão vermelho já pressionado, se encontrava em sua mão. 

— Você… não fez isto!!! — Alessa II bradou e logo deu um salto furioso até sua irmã, que deixava o pequeno dispositivo escorregar entre seus dedos até cair nas águas turvas do rio. 

Bip. Bip. Bip, bip, bip, bip,

O golpe da Cyber-Cavaleira falhou em interceptar a sua cópia, apenas acertá-la de raspão em seu braço esquerdo, pois logo após soltar o detonador, sua irmã desviou em um contra-ataque. Este quase acerta o pescoço desprotegido de Alessa, mas sua velocidade fez com que sua trança fosse atingida em seu lugar, por milésimos de segundo. A sua trança e o nó que a mantinha presa, caíram, junto com o dispositivo.

Bip, bip, bip, bip, bip… Biiiiiiiiiiiiiiiiiiiip

. . .

Os céus foram iluminados em um clarão súbito. Reflexos de bolas de fogo tomaram a superfície do Rio Minnesota, e tremores se espalharam com cada explosão consecutiva. Estrondos ensurdecedores, seguidos de sons da estrutura se contorcendo em agonia conforme a ponte de idade venerável vinha abaixo. 

As duas irmãs seguraram-se nos suportes das passarelas, protegendo-as do impacto da queda. Mas ainda assim, não foi um mergulho agradável para Lady Alessa, longe disto. Por um momento, sua consciência flutuava na miríade de gritos de agonia, e era impotentemente tragada para a luz incandescente acima. Se existe um inferno como as pessoas dizem, este foi o mais próximo que ela chegou dele. Seu corpo chegou à superfície da água, e Alessa soube que ainda não era hora. Ela puxou o ar desesperadamente, e conseguiu cuspir a água que por pouco não inundava seus pulmões. O fogo na estrutura da ponte demolida e a fumaça que dele saia, os gritos e lamúrias de incontáveis vidas se perdendo ao mesmo tempo, tudo isto inundava os seus sentidos. Lady Alessa, de braçada em braçada, conseguiu nadar até a margem.

Exausta, seus pés tocaram terra, e ela sentiu a presença de quem chegou primeiro. — Por… que? — foram as únicas palavras que saíram de sua boca.

— Aí está você — disse a voz familiar de sua irmã sombria, — sua máscara caíu. Agora você pode assumir pelo que você realmente luta! —, falava ela ofegante, com a mão em seu corte no braço esquerdo.  

Lady Alessa agora com cabelos curtos e encharcados, e sua venda perdida nas águas do rio, agora era a imagem e semelhança de sua Sombra. Seus veios pulsavam com cada vez mais força, conforme ela não conseguia suportar os pensamentos de culpa, raiva, dor… ódio. Por tudo que estava acontecendo, e principalmente, contra sua sombra.

Um riso cínico dela era o bastante, Lady Alessa deu passos largos até sua irmã, desta vez com pensamentos totalmente nublados pela emoção, ela nem conseguia convocar a sua lâmina. Ao invés, ela atacou sua adversária ferida com toda fúria, usando apenas suas mãos limpas. Socos, dando sequência a um agarrão, e em seguida, derrubando-a para a água.

A água, tinha altura até o joelho, o suficiente para segurar sua sombra com todas as forças. Ela tentava lutar, se debatendo em movimentos cada vez mais erráticos, mas Lady Alessa a segurava, pelo colarinho, e pela venda, até que ela arrancou a última de sua cabeça, revelando os olhos pálidos, brancos como pérolas de Altara. 

Tudo isto… era bastante similar ao seu sonho vívido de Cyber-Cavaleira: ela sufocava, afogava, uma parte dela mesma. Sua sombra parou de lutar, parecia que iria acabar ali. Lady Alessa não sabia o que pensar, ela apenas sentia com atenção as pulsações de sua irmã. Mas em um último momento, o peso em seus ombros era insuportável. 

Alessa, a Destruidora rapidamente recobrou sua consciência, e em uma última tentativa de se agarrar a vida, mordeu a mão de sua irmã com a força de um demônio. A dor fez com que Lady Alessa a soltasse com um berro. Ela levantou-se novamente, tossindo água e recuperando o fôlego. E se afastou da sua irmã ainda abalada pela dor.

As duas manifestaram suas Psi-Espadas pela última vez naquela noite. Ao contrário da luta anterior, ambas estavam fracas e feridas, especialmente Alessa, cuja mão direita, sangrando em uma dor imobilizante a impedia de lutar com a mesma técnica de antes. Uma rápida sucessão de golpes de uma mão só terminou com um corte de baixo para cima passando pelo peito de Alessa, com a ponta da lâmina de sua sombra, a marcando. Ela agora estava indefesa, sua espada se dissipou. Mas sua irmã, ferida, apenas foi andando para longe de lá.

Lady Alessa II não mais conseguia segui-la, não restava mais forças, nem em seu corpo, nem em seu coração e mente para isto. Ela apenas sentou-se com a venda escura de sua irmã em sua mão esquerda. E uma dor incessante em seu peito e mão direita.

Estava tudo em silêncio em meio às chamas. E foi quebrado pelo mais longo grito de agonia daquela noite.

Rifts® é um cenário e sistema de RPG publicado pela Palladium.
Rifts® para Savage Worlds é publicado pela Pinnacle; ainda não há uma versão oficial em português.

Savage Worlds Edição Aventura é um sistema para RPG de mesa publicado no Brasil pela Retropunk.

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