À Deriva – Conto de Oddcell

a deriva conto oddcell Blog

Um conto no universo bio-apocalíptico da Terra em 2048 em Oddcell,

por Victor H. S. Thomaz

Bateu 9:00 PM no relógio, mas já parecíamos estar no abismo. Apenas as luzes vermelhas do interior do Black Hawk banhavam nossos rostos, do lado de fora, a imensidão do oceano iluminado por lampejos de relâmpagos e holofotes de busca de ambos os helicópteros. Rotores zuniam, conquistando os sons da maré cada vez mais agitada do Oceano Atlântico, conforme nos aproximávamos do nosso objetivo. Fitei cada um dos meus subordinados olho-a-olho, alguns deles já estavam de balaclava e colocando os capacetes. Fiz o mesmo.

— Alfa para QG, estamos nos aproximando das coordenadas do navio. Câmbio. — Minha voz grave quase foi interrompida pelo estouro de um trovão. Por um breve segundo, pude enxergar a figura do enorme cargueiro na escuridão, com suas pinturas em um branco já desbotado: ELEUSIS. — Entendido Alfa, prossigam com a operação.

Partimos nesta missão ainda a tarde da base aérea de Salvador, na cidade murada de mesmo nome. A Guarda Costeira subordinada ao Domo já havia recebido informes do dito navio em suas águas. Tentaram contactar a embarcação, múltiplas vezes, mas nenhuma resposta veio. As coisas realmente ficaram estranhas quando as nossas praias, que recebem turistas do mundo inteiro que podem se deslocar, foram inundadas com uma onda de… corpos, vindos do mar. Todos mortos, causa aparente: exaustão. As autoridades imediatamente botaram as praias de Salvador, Fortaleza e Recife em quarentena, todos testaram positivo para Frenesi.

Os holofotes de nossos helicópteros antigos, porém ainda funcionais, miravam na grande carcaça flutuante. Nenhuma luz vinha dele, e nenhum sinal de vida, estava à deriva no meio do oceano. — Equipes Alfa, Bravo e Delta, preparar para a descida. — A voz do outro lado do rádio se afogava em ruídos de estática.

Portas laterais foram abertas, e a brisa congelante se chocou em nossas faces. Se não fosse pela balaclava que malemá protegia, eu viraria o meu rosto em agonia. Checamos nossas armas mais uma vez. Eu e o Sargento “Lança” levávamos carabinas de assalto M4, a minha com red dot, enquanto o Cabo “Agulha” estava com uma escopeta semi automática, para limpeza de salas, enquanto os outros soldados preparavam suas submetralhadoras MP5.

Munição cheia no carregador principal e nos dois reservas, seletor de tiro no disparo único, óculos de visão noturna operantes, e lanternas de trilho nas armas postas, caso o primeiro der errado. Os holofotes miravam no convés superior, iluminando nosso ponto de descida, e as cordas de rapel foram soltas até lá. Eu peguei firme a do lado direito.

— Alfa, prontos.

— Bravo, prontos.

— Delta, prontos.

Em uníssono, descemos em quatro de uma vez de cada helicóptero, logo após, segunda leva, e então, terceira. Fizemos um círculo para não sermos pegos de surpresa, mas, tudo calmo. Até demais. Quando os últimos terminaram de descer, e as aeronaves voltaram, só ouvíamos o silêncio, ocasionalmente quebrado por trovões em meio a escuridão. Relâmpagos no céu tingiam o cargueiro com uma luz fantasmagórica por breves segundos. Tentávamos enxergar através dos óculos de visão noturna, porém, os relâmpagos constantes nos desorientavam ainda mais do que olhos nus. — Ativem lanternas! — eu dei a ordem, e então finalmente pudemos entender o nosso redor com clareza.

— Alfa aqui: Bravo, Delta, iniciem uma varredura no convés — ordenei as outras equipes, assim como a minha. As pilhas de contêineres no convés superior já estavam com pintura desbotada por sabe-se lá quanto tempo nas intempéries de alto mar. Os poucos logotipos ainda legíveis, eram de empresas de transporte há muito tempo falidas e absorvidas após a ascensão do Domo. 

— Capitão, olhe essa merda — disse Lança enquanto limpava a poeira metálica, ferrugem das luvas de seus dedos após tocar um corrimão — parece que esse navio não atraca a um bom tempo. Pelo menos uma década.

— Será quantas camadas de cracas deve ter no casco? Estou surpreso que ele ainda está na superfície. — Agulha complementou. 

— Equipe, foco! — falei para ambos. Eu abri o rádio: — Bravo, Delta, relatório.

— Bravo aqui, nada encontrado além de poeira. Câmbio. 

— Delta relatando: nada encontrado. Câmbio.

— Convés superior limpo. — Um trovão ensurdecedor estourou logo em seguida. 

— QG para Alfa, continuem a busca nos outros ní… pela pro… Bravo, sigam pe… — A voz no rádio já estava inaudível. Interferência de sinal não estava entre os possíveis efeitos ambientais advertidos nas instruções da missão.

— Capitão “Gládio” para todos os ouvintes: sinal ininteligível com QG, eu repito, sinal ininteligível. Interferência de sinal vindo de fonte desconhecida. Câmbio — avisei a todos no canal geral. Em uma situação como esta, o oficial de maior patente em campo se torna responsável por toda a operação, e este, por virtude, era eu.

— Equipe Alfa: investigaremos os níveis inferiores pela proa, Equipe Bravo: investiguem pela popa. Equipe Delta, mantenham posição e estejam prontos para reforçar as equipes Alfa e Bravo caso necessário. — Minha primeira ordem como comandante, nada mal.

— Bravo entendido.

— Delta entendido.

— Vocês ouviram o cara! — Falou o Sargento Lança. Todos seguimos em frente, mas o Cabo Agulha, que deveria estar na dianteira com sua escopeta ficou para trás, estava ofegante e quase se curvando aos ventos. — Cabo! O que diabos está acontecendo? — Eu quase gritei mais alto do que deveria. 

— Um momento senhor…

— Agulha, se vai fazer isso, é melhor fazer logo! — disse Lança, agindo como um Sargento. Agulha alcançou com a mão, à sua garganta para pegar o começo da balaclava e puxou, deixando sua boca à mostra. Então todos olharam com vergonha: ele correu até o corrimão, para liberar o conteúdo do almoço pesado e lanche da tarde em alto mar. 

De fato, o balançar rítmico do navio já estava desgastando os novatos que não tinham experiência náutica, eu mesmo estava ficando tonto, mas ficar parado só estava piorando. — Alguém mais extrapolou a dieta hoje? — Eu fitei todos com olhos de rapina. Ninguém afirmou ou negou, então considerei como um não.

— Ótimo, Equipe Alfa, à frente! — Agulha se recompôs e voltou à dianteira com a escopeta em mãos. Fomos até as comportas do prédio da proa, Agulha já ia mirando sua escopeta para fazer o arrombamento. Mas apenas um toque na pesada porta de metal que deu um ranger agonizante, já foi o bastante para perceber que ela estava entreaberta. 

— Merda… — Sussurrou Lança enquanto Agulha fazia sua entrada, após escancarar a comporta com um som de ferro moído quebrando o silêncio. Nossas lanternas ligadas, iluminaram o que dava da sala escura, nenhuma atividade, mas logo… 

— Corpos! — Agulha notou. A lanterna de sua escopeta iluminava um corpo estatelado no chão, com um rastro de sangue que seguia desde a comporta do convés inferior. Era no plural, pois ele rapidamente apontou para um outro próximo. 

Sorte a dele que ele por ter vomitado antes da entrada, pois ele certamente estaria agora. O odor opressivo de cadáveres em decomposição era insuportável, e nos fez arrepender de não levarmos máscaras de gás. Lança se aproximou de um dos cadáveres com o dorso da mão em sua boca, analisando o cadáver com a ponta de sua carabina. 

— Morto faz pelo menos… duas semanas — falou ele após virá-lo. A pele do desafortunado já estava roxa e esticada pelo inchaço, eu mal consegui olhar sem virar a cara. Bom, do contrário, eu não teria notado o colete da Guarda-Costeira que ele e o outro defunto usavam. — Parece que alguém chegou primeiro — completou Lança.

Eu já estava de saco cheio de olhar aquilo, mas Agulha percebeu no outro: — Capitão, olhe! Marcas de mordida. — Aquela foi só a primeira que notamos, além de arranhões, e o braço esquerdo do morto faltando, aparentemente, arrancado violentamente.

— Já sabemos! — Eu mal conseguia aguentar. Eu abri o rádio: — Bravo, Delta, fiquem atentos, encontramos sinais recentes de violência à bordo, mas nenhum hostil. Câmbio.

— Delta entendido, redobrando as atenções.

Bravo não respondeu, mas minha mente estava ocupada demais com o cheiro infernal para notar o claro sinal vermelho. — Vamos, prossigamos até a ponte. — Minha voz era abafada pelo dorso da minha mão quando eu dei a ordem.

Em formação tática subimos as escadas estreitas até a cabine de comando, vulgo, a ponte. Lá era o único local mal iluminado por luzes de emergência. Os consoles de navegação estavam inoperantes, pois precisavam de energia completa, entretanto, a caixa preta, a parte mais importante, estava online. Usando um bug eletrônico e suas habilidades com isso, Agulha conseguiu decodificar as datas e rotas de navegação:

— O Eleusis… saíu do porto de Istambul… dia 23 de Outubro de… 2028. — Ele falava ao mesmo tempo que decodificava o transponder — exatos 20 anos atrás — ele completou. 

— 20 anos e oito dias, para ser mais exato — Lança corrigiu. — Mas… isto não foi no ápice da pandemia? E… Istambul não era o epicentro dela e… 

— Basta! — eu interrompi os dois. — Agulha, copie os dados e envie em canal aberto.

— Mas, Capitão–

— A-ber-to. 

— Isto não vai contra o protocolo de segurança operacional? — Lança questionou.

— Rapazes! Tem algo muito sujo acontecendo aqui… todos além da gente merecem saber disso! — falei enquanto fitava todos olho-a-olho.

— Entendido. — Agulha começou a compartilhar os dados.

— Bom, tu que é o responsável pela operação — Lança sussurrou para ele mesmo.

— Exatamente — completei a afirmação.

. . .

— Direita, limpo.

— Esquerda, limpo.

— Corredor limpo.

Já era a terceira vez que repetimos estas frases conforme fazíamos a varredura por corredores labirínticos no convés inferior. Tivemos que refazer nossos caminhos algumas vezes para não ficarmos perdidos. Ao menos não havia impedimento para nossos óculos de visão noturna agora, estávamos vendo tudo por aquele filtro verde granulado. 

Viramos mais um corredor, este era mais amplo, e dava até a cafeteria de um lado e a área de carga do convés inferior do outro. — Olhe Capitão, acho que encontramos o culpado. — Lança iluminava com a lanterna da carabina (ainda precisávamos delas para notar detalhes perigosos), a logo da Corsus na parede… pelo menos umas três versões anteriores dela. 

— Podemos nos preocupar em processar os responsáveis depois, por enquanto, recolher evidências e esperar voltarmos intactos — eu disse. Agulha bateu uma foto da enorme logo estirada pela parede branca, com camadas viscosas de sujeira.

— Alfa para todas as equipes: relatório.

— Delta aqui, ouvimos barulhos suspeitos, mas falso positivo. Câmbio.

Eu esperei Bravo dar a resposta…

— Alfa para Bravo: relatório.

Silêncio.

— Olhe esta merda Capitão. — Agulha já chegou com uma pequena flor carmesim entre os dedos, quase translúcida quando contra a luz. Removi o óculos de visão noturna, eu jurava poder enxergar os veios avermelhados com clareza. — Agulha, agora não é hora pra– 

Ele apontou para onde achou: uma camada de musgo rubro dominava uma das paredes, com cipós quase como artérias expostas aparentavam vir tanto do teto quanto do chão, e das tubulações que pingavam algum líquido igualmente rubro como sangue, porém viscoso.

— Guarde isso… — Eu já estava ficando tonto, com o chacoalhar do navio, e com o que acabamos de encontrar, e também, impaciente.

— Alfa para Bravo: responde, caralho!

— AAAAAARGH!!!

O grito no rádio me ensurdeceu por segundos mais longos do que eu gostaria.

Tiros abafados em sequência ecoaram pelos corredores. — Merda! — gritou um. — Bravo precisa de ajuda! — gritou outro.

— Bravo, o que está acontecendo?! — eu gritei. Olhei em volta, todos atônitos.

— Bravo aqui… — A voz no rádio se misturava com gritos de agonia, ordens desesperadas e balbuciações ininteligíveis — estamos sob ataque! Hostis des… aaargh! Morra, maldito!!! — e mais tiros de calibres pesados ecoaram.

— Delta, a caminho!

Eu desliguei o rádio, e me escorei na parede. Minha respiração estava ofegante, apesar de não ter corrido, saltado ou feito coisas fisicamente extenuantes. Minha visão ficava sem foco, como se minha consciência quisesse saltar do meu corpo. Meus olhos marejados focaram no musgo rubro bem ao lado, senti a clorofila vermelha pingando nos meus ombros e na minha cabeça. E junto disso… eu jurava, ter visto óleo, tão viscoso quanto, e enegrecido.

Me recobrei com um salto repentino. Lança, Agulha e os outros repetiam — Capitão?! — até eu recobrar meu senso de si. — Diga soldado!

— Soldado Espeto foi investigar a cafeteria. Sozinho — reportou o Sargento Lança.

— O que?!!

— Eu tentei dissuadi-lo! Mas ele jurou ter visto algo lá! — disse Cabo Agulha.

Todos olhavam para mim. Um barulho súbito veio da escuridão da cafeteria. Seguido de muitos do mesmo tipo. E então, uma rajada de 9mm.

— Merda! Soldados, resgatem Espeto!

Todos apontaram suas armas para a escuridão, exceto Agulha que estava mais próximo da porta, e não deu para ele se virar a tempo. Uma miríade de braços sujos, feridos, fétidos surgiram do abismo atrás de Agulha com balbucios ininteligíveis do que aparentavam ter sido humanos. — Agulha, às suas seis! — eu gritei.

Ele tentou se virar, mas vários deles já agarraram sua perna, enquanto outros tentavam pegar seu braço. Ele inverteu o cano de sua escopeta para o que estava em seu cangote, e puxou o gatilho. Sem nem saber o que e se atingiu, ele tentou correr, mas tropeçou nas mãos que agarravam seus pés. — Abrir fogo! — eu berrei. 

E assim os soldados fizeram. Rajadas se misturavam com urros selvagens. Mas a horda de frenéticos era maior que os nossos cintos de munições e mais resistentes do que o esperado. Minha carabina com red dot foi certeira abrindo buracos de 5.56 na cabeça de uns três deles. Mas não adiantava. Observava impotente, a horda engolindo a primeira linha de combate. Então, Lança surgiu na minha frente. — Capitão, para trás!!!

Eu caí, tropeçando num cipó enquanto ele ajustava a mira e disparava com a M4 dele. Eu me levantei, e sem pensar… corri. Corri para trás… corri pela minha vida.

Sim, eu corri do combate como um covarde. Meu coração pulsava a mil, e eu só tinha a comporta pesada para a área de carga em minha visão. Além do vidro redondo, apenas a escuridão abissal.

Cheguei lá, quase tropeçando de novo, ouvindo tiros e gritos atrás de mim. Girei a manivela com muito esforço, até que não poder mais. Empurrei com o peso do meu corpo e entrei. Me escorando na porta, segurando-a com o meu corpo, eu finalmente pude observar.

Estava em cima de uma passarela com uma escada que descia abaixo, no convés aberto onde deveriam estar pilhas de contêineres. Luzes vermelhas de emergência banhavam a sala, seu espaço era coberto pelo que só pode ser descrito como uma vegetação selvagem. 

Troncos retorcidos, galhos serpenteados, cheios de vinhas e cipós enegrecidos. Pulsavam, como veias e artérias de forma rítmica, como se tivesse um coração bombeando seu sangue. O maior dos troncos vinham de uma pilha cada vez mais uniforme de cadáveres empalados por galhos, e conectados por cipós, tudo coberto com a mesma camada de óleo viscoso, vermelho e negro como petróleo, assim como todo o interior do convés, e os vários containers destroçados e retorcidos para dar espaço a àrvore infernal.

Mas o cheiro… como lavanda, como roupas recém limpas em um belo dia de primavera.

Nada conseguia me tirar da paralisia naquele momento. Eu dei passos, para encarar a cena mais de perto. Não ouvia nem mais os tiros e gritos além da comporta.

Eu ouvi… um sussurro… várias vozes ao mesmo tempo, vindas de todas as direções:

— Seja bem vindo, Capitão…

 


Oddcell é um universo de RPG que aborda um planeta Terra em 2048, devastado por uma guerra nuclear sob resquícios de um vírus que transformou pessoas comuns em seres dotados de poderes inimagináveis. Acompanhe o site e fique por dentro das novidades. oddcell.com.br

Compartilhe esse post:

+ ARTIGOS