O carpete carmesim estava úmido, mas quase não dava pra ver as manchas. Com o rosto encostado nele eu tentava diferenciar o vermelho do sangue molhado entre as texturas macias de mesma cor. Era como se eu precisasse avançar numa gincana ridícula e sem sentido. Tudo para fazer o tempo passar mais rápido e desviar minha atenção da dor e da sensação das costelas quebradas espetando o meu pulmão. Eu não aguentaria mais um chute.
— Ele é um Ímpar. Ele aguenta. — A voz áspera do soldado trouxe uma risada seca. — Não é isso que vocês fazem? Sobrevivem a qualquer coisa? Heróis, não é?
— Tão herói que não consegue nem salvar a si mesmo! — Zombou a mulher de uniforme negro, erguendo o pé para mais um chute. — Se é tão especial, por que não reage? Ou morre logo ou me dá a merda da localização, seu verme!
A mulher de uniforme negro concorda com o soldado e me acerta de novo, mas desta vez, consegui me virar para que o chute pegasse na barriga. Não tinha como eu me contorcer mais, eu já parecia um casulo humano tentando proteger a cabeça e a genitália, mas meu corpo todo parecia estar quebrado. Fazia tempo que eu não sentia tanta dor e eles perceberam isso.
Ela queria que eu os levasse até a entrada do metrô que desembocava nas galerias de uma comunidade de sobreviventes que adotaram o subterrâneo como lar. Duas horas antes eu andava pelas ruínas de Londres em busca da entrada da Circle line, que segundo as cartas dos peregrinos mortos que encontrei no centro da cidade, era a única entrada para a estação do metrô que abrigava aquela enorme população de sobreviventes dentre os quais um punhado de Ímpares como eu estavam escondidos. Qualquer ataque poderia acabar num massacre se eu não os encontrasse primeiro.
As ruínas de Londres eram como uma selva de concreto e aço desmoronado, com prédios inclinados uns contra os outros prestes a desabar. As ruas eram um labirinto de veículos enferrujados e carcaças retorcidas. As lojas e fachadas pareciam entradas sinistras para galerias de cavernas, onde a arquitetura era coberta por musgos vermelhos e verdes que anunciavam a aproximação do Emaranhado. A baixa luz da cidade era um prato cheio para alguns pequenos grupos de frenéticos. No terceiro andar de um antigo prédio comercial eu comecei a montar acampamento, pois não era seguro viajar durante a noite. Eu podia ver os frenéticos caminhando cambaleantes entre os destroços, sem rumo e sem propósito. Os grunhidos e ranger de dentes podiam ser ouvidos de longe, junto com xingamentos e urros balbuciados contra nada e contra ninguém. Simplesmente aquelas criaturas que já foram humanas, sopravam sons toscos ao vento como se compusessem uma canção macabra e ameaçadora por toda a cidade. Observei por mais algumas dezenas de minutos. Os olhares, os passos apressados. Alguns deles reviraram os destroços e faziam mais barulho do que o normal, quebrando vidraças e invadindo lojas abandonadas.
Um movimento no prédio em frente me chamou a atenção, no primeiro andar. O lugar parecia uma loja de roupas, com a vitrine destruída anunciando uma convidativa entrada pela frente, onde um manequim estava atravessado como se alguém o tivesse usado para quebrar o vidro. Ajeitei meu colchonete bem próximo à varanda onde estava e me deitei sobre ele, observando de cabeça baixa. Não demorou para que uma figura de baixa estatura saísse do buraco da loja do prédio em frente. Vacilante e cauteloso, o homenzinho atarracado olhava para os lados, identificando o grupo de frenéticos e, como se desempenhasse um plano previamente arquitetado, puxou uma boneca da bolsa que carregava a tiracolo. Agachado por trás dos escombros, o homem acionou um botão nas costas da boneca e a arremessou do outro lado do muro, onde algumas sucatas de carros estavam amontoados. O som da boneca caindo no banco carona de um dos veículos não fez barulho, mas logo após a aterrissagem o brinquedo foi acionado emitindo um som de choro estridente.
Não me lembro de ter visto bonecas tão barulhentas em toda a minha vida e, com certeza, aquele modelo fora modificado para servir como um dispositivo de atrair frenéticos. Pude contar seguramente vinte deles, talvez mais, correndo enlouquecidamente na direção dos carros com ódio febril nos olhos. A aglomeração criou uma espécie de “entupimento” nas janelas dos carros, impedindo que qualquer um deles pudesse alcançar a boneca. Foi um arremesso de sorte, com certeza, mas ele criou uma cena interessante. Me entretive naquele jogo esdrúxulo e até pude esboçar um sorriso bobo, até que voltei o olhar para o homem. Onde ele teria ido?
Mais à frente, há uns vinte metros dali descendo a rua, o homenzinho atarracado parou de se esgueirar pela calçada e levantou as mãos para o alto. Das sombras de uma oficina abandonada, um soldado do Exclave apontava a arma enquanto saía devagar, sussurrando algo que eu não conseguia ouvir. Provavelmente era uma ordem para parar ou para se render, algo que o homenzinho não obedeceu e respondeu com uma tentativa de ataque estranha. Ele também era um Ímpar.
A barriga protuberante do baixinho diminuiu enquanto seu peito estufava puxando todo o ar ao redor. Dava pra ver folhas de papel rodopiando vindas de todos os lados, navegando na lufada de vento que se formava. Em seguida ele começou a soprar na direção do soldado, que imediatamente teve seus membros inferiores congelados no chão. O hálito congelante do homem subia pela cintura buscando cobrir todo o corpo do soldado que, mesmo com os dedos levemente enrijecidos, conseguiu efetuar um disparo bem no peito de seu alvo.
O som do disparo era baixo e não foi suficiente para alertar os frenéticos entretidos. O Ímpar não morreu e se pôs de joelhos, com a mão no peito sentindo a dor do impacto. Ele tentou soprar mais uma vez, mas nada aconteceu. Então, com a coronha do fuzil, o soldado quebrou o que restou do gelo que cobria sua perna e caminhou em direção ao Ímpar, acertando-o com um chute no queixo assim que alcançou a distância perfeita e o nocauteou. Aquilo foi…
Sim. Era exatamente o que eu estava pensando. Ele foi nulificado. A temida arma do Exclave estava sendo usada pelas patrulhas de Londres. Eles não queriam se defender, mas sim eliminar cada Ímpar que encontrassem, nem que para isso tivessem que matar toda uma comunidade de sobreviventes como efeito colateral.
A arma agora apontava para a cabeça do Ímpar. O soldado acionou um dispositivo no fuzil. Desta vez o tiro seria letal. Eu tinha que intervir. Era apenas um soldado e eu tinha o fator surpresa. Da sacada da varanda eu apontei minha mão espalmada na direção dele e senti os fótons se acelerando, ao ponto de começar a criar um feixe de energia altamente destrutivo. A energia concentrada aumentava com uma luminosidade intensa que desintegraria meu alvo se eu o tivesse acertado. Mas antes disso, senti um projétil silencioso atingir minhas costas e no susto, enquanto eu caía no chão, meus poderes cessaram. Dois soldados do Exclave estavam bem atrás de mim, caminhando lentamente para fora da escuridão como se emergissem de um lago negro e sinistro. Assim começou meu espancamento.
— Então, — continuou a mulher, rindo baixinho. — Não importa o quão forte você acha que é, diante do Exclave você é só mais uma aberração. — Ela se agachou perto do meu rosto. — Vocês fingem ser humanos como se ainda pertencessem a este mundo. Fingem se importar com o que restou da humanidade, mas no fim, vocês só querem dominar. Você é um erro e nós estamos corrigindo o mundo de anomalias como você.
Enquanto a mulher falava agachada próxima a mim com o dedo indicador encostado no meu rosto, o outro soldado começou a vasculhar meus pertences. Não ia demorar para ele encontrar a carta dos peregrinos na minha mochila, com instruções detalhadas de como chegar até a Circle line. Continuei com o rosto colado ao chão mas já não escutava mais o que eles diziam. Minha atenção estava focada nos muitos passos que eu podia sentir e ouvir, vindos na nossa direção. Algo havia atraído os frenéticos e os soldados não perceberam até que os primeiros deles começaram a entrar pelas janelas quebradas do prédio. Eram rápidos e violentos, se lançando na direção de tudo que se pusesse entre eles e nós.
O momento perfeito. Enquanto os soldados se viravam para atirar na pequena multidão que os atacava eu comecei a me concentrar. Precisava me esforçar mais para sobrepujar a força das toxinas nulificadoras e torrar aqueles filhos da puta, mas aquilo era perigoso pra cacete. Eu podia morrer no processo. Sem ter mais nada a perder, me concentrei e deixei todo o ódio fluir pelo meu corpo como uma droga de ação rápida, percorrendo minhas veias e impregnando meu abdómen. Por um momento pude sentir os fótons novamente, se agitando e se acelerando, percorrendo meus olhos, boca e mãos.
A luz foi intensa demais para que eles vissem seus corpos sendo pulverizados por completo. O feixe de aceleração de fótons transformou em fumaça frenéticos, soldados, paredes, móveis e tudo o que estivesse naquela sala abandonada. Eu não consegui parar e fixei minhas mãos abertas no chão buscando estancar o feixe devastador, mas ele continuou ligado, avançando para baixo e abrindo um enorme buraco por cerca de quinze metros de profundidade.
O caminho de devastação havia se tornado um fosso, ainda um pouco iluminado pelas partículas de fótons que se dissiparam rapidamente. No fundo era possível notar corpos mutilados, pessoas assustadas, choro, gritos de desespero… e morte. Lá em baixo em meio à chuva de destroços, metade de uma placa de sinalização rodopiava antes de pousar sobre o chão queimado, onde ainda se podia ler as palavras “Circle line”.
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