O Evaristo era boa pessoa. Sempre que podia me levava um par de canela-de-ema, colhidas das clareiras de cerrado que ainda resistiam ao Emaranhado. A beleza delas era tão pungente e suave, mesmo com as pétalas tingidas de azul pela força da vegetação mutante. Pelo menos os tentáculos de cipós daninhos não destruíram essas flores que se mostraram tão fortes quanto antigas.
Ainda me lembro de quando as pétalas eram roxas, antes da bomba nuclear atingir o Paraguai. Lembro também do aroma característico que costumava perfumar meus cabelos. Naquela época, o mundo era diferente. Eu era diferente. Agora, o cheiro que me guia é outro. Não mais o das flores, mas o cheiro metálico e quente de sangue.
Meu olfato já estava bem apurado por consequência da mutação. Essa característica me fazia mais feliz do que os músculos potentes e as mãos fortes que, na maioria das vezes, só faziam as pessoas me respeitarem através do medo. Como uma boa Kaiowá, o cheiro das flores sempre me guiavam pela floresta, mostrando caminhos povoados pelas mais belas paisagens, mas hoje, neste mundo de pó e cinzas, o que me guia é o aroma do sangue dos meus inimigos exalando terror na noite escura.
Eu gosto quando eles fogem. Eram cinco ou seis quando atiraram no Evaristo sem fazer perguntas. Tudo porque ouviram falar de uma tal reserva Marangatu onde a vegetação antiga reinava frondosa sobrepujando os tentáculos do Emaranhado. Evaristo protegia as entradas da reserva no único caminho seguro que levava à clareira, e não teve nem ao menos chance de se defender. O Domo é covarde e atira pra matar, minimizando ao máximo as chances de baixas dentre os seus. Só depois dos disparos é que pude agir. Chegando lá, notei a eficácia do tiro através de um buraco milimetricamente localizado entre os olhos ainda abertos do vigia. Mesmo morto, Evaristo parecia surpreso.
O rastro do cheiro de pólvora ia na mesma direção que as batidas cardíacas. Estavam calmos e eram cinco. O sexto soldado já tinha sido devorado pela jaguatirica que acompanhava Evaristo e mesmo assim, os outros não se abalaram e ficaram apenas apreensivos quando o animal fugiu se embrenhando na mata densa. Ali era o meu refúgio, o meu território. Só que eles não sabiam disso.
Idiotas. Acharam que equipamentos de visão noturna evitariam que fossem surpresos. Mas eu os observei durante quase dois quilômetros mata adentro e resolvi acabar com a calma e apimentar o clima, atacando o último da fila, que passou bem próximo a mim enquanto eu aguardava camuflada dentro dos arbustos espinhosos. Minha mão direita alcançou sua cabeça e antes que ele pudesse gritar, apertei como uma laranja podre, esmigalhando o capacete, o cérebro e as cordas vocais ao mesmo tempo. Puxei lentamente o corpo para o arbusto e continuei a caçada.
Em poucos minutos o cheiro de medo começou a se espalhar. Os outros quatro notaram a ausência do soldado. A pequena tropa estava se aproximando da reserva e talvez eu não tivesse muito tempo antes que chegassem lá, onde um tiroteio poderia colocar em risco os sobreviventes da aldeia. Como um espírito da morte, saltei das sombras em direção aos soldados, mostrando minha vantagem física sobre eles, mas sem esperar rendição. Meus olhos amarelos ressaltavam-se mais que o normal em noites de lua nova, e minha raiva os acendia ainda mais. E foi assim que iniciaram-se os disparos.
As balas amorteciam-se a cada contato com a minha musculatura densa e isso os aterrorizava ainda mais. Com meus dois metros e trinta de altura, as armas apontavam para cima e eu podia ver seus braços tremerem pelo recuo das rajadas enquanto suas mãos tremiam de medo. Os dedos não se separavam dos gatilhos. Olhavam uns para os outros, vacilantes, desejosos por uma ordem de retirada enquanto ainda houvesse tempo. Mas a ordem não chegou.
O primeiro soldado estava mais próximo de mim e parecia o líder da tropa. Ele parou de atirar e lançou sua mão direita para o alto, talvez para sinalizar alguma ordem de fuga, mas não deu tempo. É engraçado segurá-los pelo braço e sacudir como uma boneca de pano, batendo o corpo frágil contra os troncos das árvores. Elas não se machucam, mas eles, sim. E muito.
Por alguns instantes poupei os dois últimos sobreviventes para vê-los implorar por suas vidas. Talvez uma gota de arrependimento deveria existir debaixo daquelas máscaras de olhos vermelhos, mas eu não podia vê-los. E nem queria. Arrastei o último deles de volta pelo caminho de onde vieram, e o pendurei na copa de uma árvore alta. Embora nu, deixei o rádio comunicador em suas mãos para que pudesse chamar reforços e retornei para a mata.
Para mim, a paciência nunca foi uma virtude. Espero que dessa vez, venham muitos.
Siga a Odyssey em nossas redes sociais para mais notícias selvagens!
Oddcell é um universo de RPG que aborda um planeta Terra em 2048, devastado por uma guerra nuclear sob resquícios de um vírus que transformou pessoas comuns em seres dotados de poderes inimagináveis. Acompanhe o site e fique por dentro das novidades. oddcell.com.br