atoleiro conto oddcell Blog

Estávamos quase lá, prontos para sair daquele inferno que chamam de Novo Rio. Minha mochila pequena e leve continha tudo o que eu precisava para iniciar uma nova vida nos confins do Deserto da Guanabara. Só faltavam alguns quilômetros, muita areia e um pouco de sorte.

Apenas dois a cada três comboios de coiotes conseguiam fazer uma travessia perfeita pelo deserto, intactos e sem baixas. As estatísticas mostram que o outro terço passa por avarias severas nos veículos e emboscadas de saqueadores e de criaturas, que acabam em mutilações e morte. Eu estava de pé no meio de uma fila de onze pessoas, sem contar com o motorista que aguardava dentro da van adaptada, com um cigarro frouxo na boca e batucando no volante ao som de um heavy metal. Também tinha o copiloto que passou por mim e me deu uma cutucada com o cano do fuzil. 

— Tá olhando o que, pacote? —  Era assim que eles chamavam os clientes que gastaravam anos de economias suadas para fugir dessa merda de cidade. Puxei o capuz do meu casaco e fitei o horizonte buscando não cruzar olhares com os coiotes. A lua prateada iluminava o cais do porto tanto quanto o farol da van, proporcionando uma penumbra perturbadora. Para trás, pilhas de caixas, containers e caminhões guardavam o silêncio de um porto inativo. À frente, o reflexo da lua pairava sobre as bolsas de água malcheirosas e lamacentas que precediam o grande Deserto da Guanabara. Esta região difícil de se cruzar era conhecida como O Atoleiro e dificultava o acesso do deserto ao cais do porto e vice-versa. Mas os coiotes tinham veículos anfíbios, especiais para se locomover tanto no deserto, quanto na lama sem o risco de afundar.

Os primeiros da fila começaram a ser conduzidos para dentro da van. Por um instante tentei fitar a fisionomia das pessoas e me distraí. Uma senhora que tinha por volta de uns oitenta e poucos anos de idade subiu com dificuldade, e foi auxiliada por um rapaz que vinha logo atrás na fila. A porta da van era alta e para subir, usava-se as esteiras-lagarta como escada, uma adaptação que substituía as rodas do veículo. Depois que a velhinha estava sentada em segurança, o rapaz voltou para buscar sua mochila que havia deixado no chão junto à esteira, puxou-a para dentro e a pendurou no ombro desajeitado, deixando cair alguns pequenos pacotes de chocolate. Pude observá-lo catando os pacotinhos apressado, quando o copiloto se aproximou e pisou sobre um deles, agachou para pegá-lo e o guardou no bolso da camisa. Um último pacote havia caído na parte de dentro da esteira da van e foi deixado para trás quando o rapaz se dirigiu para um acento no fundo. Os demais, homens, mulheres, jovens e idosos, todos carregando um olhar de medo e esperança, se acomodaram em seus lugares até o veículo dar a partida, deslizando sobre a lama do Atoleiro enquanto sua esteira de tanque de guerra deixava um caminho fundo, que logo era encoberto pelas águas fétidas e escuras.

Tudo ia bem. Eu e meus sonhos guardados dentro da mochila seguíamos rumo ao enorme Complexo Hemptons, um lar para os párias, infectados e Ímpares. Embora não tivesse o luxo do Novo Rio, o Complexo era uma terra de oportunidades para aqueles que não viam propósito na vida caótica do pós-guerra. Enquanto o Novo Rio garantia um salário de merda e trabalho obrigatório, o Complexo oferecia a liberdade de fazer o que bem entender, desde que se obedeça as ordens do Comando Araka.

A primeira vez que vi um Araka foi no noticiário. Minha tia Bete dizia que eram vagabundos e terroristas, repetindo o que os documentários diziam. No fundo, eu sempre pensava sozinho: “e se?”. Era prudente questionar porque, pensando bem, quais eram as reais intenções dos caras? Eles vinham com aquelas máquinas de guerra modificadas, tocavam o zaralho, explodiam prédios governamentais, sequestravam figurões da política local, tudo isso só pra causar? As emissoras de telejornalismo só cometiam um erro…

— O que você quer, rapaz? — me perguntou a velhinha sentada no banco ao meu lado. — Tá tudo bem?

— Sim, senhora. Está sim. — respondi envergonhado quando notei que em meus devaneios, eu estava olhando fixamente para sua bolsa cheia de frutas, mesmo sem perceber.

— Quer uma tangerina? — Ofereceu a velhinha com um sorriso espaçado, mostrando alguns dentes sem pares dentro da boca.

— Não, senhora. Obrigado.

— O que foi, rapaz? Estas tangerinas vieram da cidade. Veja o selo da Nutrinow — A velhinha aproximou a fruta do meu rosto. Desviei e afastei sua mão com gentileza, tentando um sorriso genuíno. — Não estou com fome. Obrigado.

Ela ia guardar a tangerina dentro da bolsa, mas resolveu enfiar o dedão no meio da fruta e abri-la com a mão. Em seguida, puxou um gomo e comeu, mastigando do lado da boca onde ainda lhe sobravam alguns dentes. 

— Ahhh! Achou que ia sair um tentáculo de dentro desta tangerina, não é?  — Ela riu com voz crocante, se engasgando e depois soltando uma tosse pigarrenta.

— A senhora está bem? — Falei colocando a mão em suas costas para tentar ajudá-la.

— Tá tudo bem, rapaz. Essa não é uma fruta mutante do Emaranhado, viu? — Disse a velha tirando minha mão das costas dela. — Eu não te mostrei o selo? Isso é fruta local, rapaz. Coisa fina. Coisa de trabalhador.

A senhora me pareceu levemente irritada. Não achei que ela fosse pensar que realmente eu tive medo de receber uma do Emaranhado. Mas eu entendi a preocupação dela. São tantos mercadores e viajantes contrabandeando coisas do além-muro, que fica difícil aceitar algo que não tenha procedência confirmada. Lá dentro dos muros do Novo Rio, as empresas filiadas ao Domo garantem produção e comércio de produtos saudáveis para a vida humana, enquanto os laboratórios da Corsus estudam o Emaranhado para extrair o que possa nos servir. Só que estes estudos são muito lentos.

Como, com toda a tecnobiologia de hoje, não conseguiram curar o câncer da tia Bete. Por que ela teve que morrer no hospital? Eles não poderiam fazer mais nada, disseram.

A velhinha tocou na minha mão. Depois olhou para além de mim e para trás, averiguando as outras pessoas na van. Olhei para o lado para tentar ver o que ela observava e notei que o homem do chocolate estava dormindo.

— Chiu! — a velha fez o som com o dedo indicador na frente da boca. A mão enrugada ainda repousada sobre a minha, me segurou mais forte. Eu não impedi. Senti uma sensação engraçada, como aquelas ditas “borboletas no estômago”, só que na mão. Parecia uma dormência estranha que percorria minha carne e chegava até minhas veias, irradiando até o cotovelo. Levei um susto, mas não me opus e continuei observando o que a velhinha estava fazendo.

— Jonas, certo? — Não pude disfarçar minha surpresa. Muito menos quando os olhos da velhotinha se esbranquiçaram como duas pérolas reluzentes. 

— Jonas, meu rapaz. —  disse a velha apertando minha mão com força. — Não sofra. Por que a fuga, Jonas? A tia foi bem mais que uma mãe para você.

Retirei minha mão bruscamente. Meus olhos arregalados fitando o sorriso banguela da velha, quase lhe perguntavam “que porra é essa”. A dormência não parou, mas subiu para os ombros e parecia começar a se espalhar pelo meu corpo. Ofegante, senti o suor escorrer pelas minhas têmporas.

— Como você…? — Não consegui terminar a frase. A velha sorria pra mim de uma forma diferente, como se aquele rosto não pertencesse mais à ela. Eu conhecia aquele sorriso e o tinha visto pela última vez em uma cama de hospital, entre tubos, fios e morfina vencida. Um sorriso de “adeus”. Tudo começava a se tornar mais presente e real do que eu gostaria.

— Eu vi tudo, Jonas — disse a velhinha. — Eu vi enquanto dormia. Vi você desligando os aparelhos e segurando a minha mão até ela parar de se mexer. Vi você chorando. Suas lágrimas salgadas e frias gotejando no meu rosto. 

— Isso é mentira — gritei. — Você pediu, implorou! Eu só queria te dar um fim digno, sem dor e sem sofrimentos.

— Pedi? — No rosto transposto da velhinha, bruxuleava a fisionomia da tia Bete enquanto seus olhos se derretiam em lágrimas. Olhei ao meu redor buscando firmar a realidade. A van, os passageiros, o heavy metal. Tudo desapareceu ou foi sutilmente modificado. Um silêncio reinou e as nossas vozes ecoavam como se estivéssemos num vale de ecos intermináveis. A van continuava em movimento, mas era como se estivesse vindo de lugar nenhum e indo para o nada. As pessoas pareciam congeladas em um milésimo de segundo sem terem sido avisadas, e o cheiro de combustível foi substituído pelo aroma inconfundível de éter e flores.  

Tentei levantar, mas minhas pernas falharam. As paredes da van começaram a se comprimir me levando a um desespero claustrofóbico. Enquanto elas se aproximavam, eu olhava o leito do hospital através da janela de vidro, com os mesmos lençóis, as mesmas manchas de ferrugem, o mesmo travesseiro remendado.

— Eu acordei, Jonas — dizia a aparição enquanto eu tentava fixar apenas um dos rostos naquela face tremeluzente. — Você precisa terminar o que começou. Precisa fazer direito. Eu acordei, Jonas, e ainda sofro.

Um som de embalagem plástica se abrindo roubou a minha atenção. Olhei para trás subitamente e vi o homem do chocolate, agora de pé. O que parecia uma fagulha de normalidade começou a mudar, com o rosto do homem pálido se derretendo e revelando, por baixo dele, o rosto da tia Bete.

— Volte, Jonas — disse tia Bete com a voz trêmula de desespero. — Termine o que começou.

A van naquele momento era como um cubículo onde só cabíamos eu e a velha (barra) tia Bete, e ela segurava aquela tangerina. Puxou mais um gomo e levou à boca. Enquanto mastigava, seus dentes soltos caíam da boca. Os olhos escorreram e o corpo dela explodiu em uma massa de fibras nervosas e raízes vermelhas que se espalharam pelo teto e paredes da van. Cobriu acentos, mochilas e as pessoas ao redor. Gritei.

— Ô doidão! Acorda, porra! — Quando abri os olhos, vi o motorista da van me segurando pela gola da jaqueta e me estapeando a face com a outra mão.

— Já acordei — bradei, me desvencilhando das mãos do brutamontes.

Olhei ao redor através das janelas antes de descer da van. Era um posto avançado, a última parada antes de chegarmos ao Complexo Hemptons. A van estava vazia e eu fui o último a descer. Lá fora, contei onze passageiros além de mim, mas a velha não estava entre eles. 

— Moço — perguntei logo que me aproximei do motorista enquanto ele limpava a poeira do parabrisa. — Aquela velhinha que estava sentada do meu lado? Onde ela foi?

— Velhinha… — o motorista sorri e olha para o rapaz que carregava os chocolates. — Tá te chamando de velhinha, mermão — em seguida solta uma gargalhada densa.

— Sim — insisti, me colocando à frente do motorista para olhá-lo nos olhos. — Uma senhora carregando uma sacola cheia de frutas. Estava sentada ali, do meu lado.

— Olha, pacote — retrucou o motorista. — Aproveita teu tempo de parada e vai tirar uma água do joelho, beleza? E não me enche o saco — ele saiu andando e secando as mãos num pano sujo.

Ok — pensei. — Tudo não passou de um sonho. Eu fiz a coisa certa. Preciso parar com essa cisma.

Estava bem escuro e a única fonte de luz vinha dos faróis da van, posicionados sobre uma mesa improvisada contendo água e uns pães velhos.  Olhei para trás tentando ver o quão afastados da cidade nós estávamos. Não dava pra ver bem, porque as luzinhas do Novo Rio se apagavam no meio da cortina de poeira, que os ventos faziam na fronteira do atoleiro com o deserto da Guanabara.

Tirei minha mochila e a pus no colo. Abri e busquei por uma garrafa d’água, mas acabei tateando algo diferente. Puxei para fora uma tangerina, aquela mesma que a velha havia me oferecido, ainda com o selo da Nutrinow colado na casca.

Tia Bete — pensei.

Eu precisava voltar. Agora não tinha mais como me esconder.

 


Oddcell é um universo de RPG que aborda um planeta Terra em 2048, devastado por uma guerra nuclear sob resquícios de um vírus que transformou pessoas comuns em seres dotados de poderes inimagináveis. Acompanhe o site e fique por dentro das novidades. oddcell.com.br

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