Essa é a continuação de Resenha: Arcane (2021). Na primeira parte, discutimos um pouco sobre a trama, os principais personagens e seus conflitos. Aqui, nos aprofundaremos sobre a construção de personagens, sua relação com o universo e como a estética Steampunk oferece material filosófico suficiente para histórias cativantes, assim como lentes para olharmos nosso próprio mundo.
Diferente da resenha anterior, essa mergulhará em questões essenciais à trama e aos personagens, então atenção aos spoilers!
A série em si é uma obra de arte com relação à construção de personagens complexos e moralmente heterogêneos, onde nunca sabemos exatamente as intenções e reações de certo personagem, e novas reviravoltas iluminam novas e complexas facetas da personalidade de cada um, sem perder em consistência e princípios. Personagens como Silco, que à primeira vista parecem cair no estereótipo do vilão de Hollywood, demonstram-se muito mais profundos: sua relação com Jinx é uma de manipulação e gaslighting, ou de amor genuíno? Ambessa, mãe de Mel, que se demonstra impiedosa e manipuladora para conquistar o que precisa, verdadeiramente a exilou de sua terra natal por “se sentir fraca”, ou usou o que Mel queria ouvir para manipulá-la? Não temos uma resposta definitiva para nenhum desses conflitos. Os personagens acertam e cometem erros, sem uma linha clara que os separe. Essas supostas contradições dentro de um mesmo personagem ajudam a complexificá-lo, a reduzir os clichês e estereotipias, e a surpreender os espectadores.
Além disso, Arcane não se priva de discutir temas delicados com a complexidade e sutileza necessárias, e sem se embasar em respostas moralizantes. Jayce se justifica em querer tomar atitudes por vezes precipitadas em nome do progresso, e de uma possível cura para Viktor? Até que ponto o avanço científico é benéfico, e em que momento ele passa dos limites (e quais limites?), trazendo consequências imprevistas e danosas? A Subferia se justifica em tentar se separar de Piltover para formar o distrito de Zaun? Arcane traz dilemas complexos, sem respostas fáceis.
Um tema profundamente abordado é a questão da doença física e mental, em particular quanto à sua profunda relação com as condições socioeconômicas. Jinx tem delírios persecutórios e alucinações auditivas e visuais dignas de um diagnóstico de esquizofrenia, e a série explicita o vínculo do medo do abandono e da instabilidade de suas relações na Subferia com seu transtorno. Vi possui impulsos autodestrutivos, constantemente se colocando em situações perigosas e negligenciando a própria saúde. Silco possui dores constantes no olho esquerdo após sofrer degenerações neurológicas por toxinas de um rio da Subferia. Viktor, antigo morador da Subferia, possui debilidades físicas que o motivam em suas próprias pesquisas, e há indícios de que parte de sua condição decorra das privações e exposições na infância.
A presença da Cintila na Subferia, droga capaz de causar alterações físicas e mentais, também mostra marcas intensas do sequestro neuropsicológico de seus usuários, presos no uso de uma substância que sabem fazer mal, mas incapazes de se soltar. Mas além do seu elemento claramente nocivo, a Cintila traz outro tema importante à discussão de Arcane e de sociedades “punklike”: o transumanismo. O quanto a Cintila, sendo capaz de melhorar as capacidades humanas naturais, não se torna, na visão da sociedade, o novo patamar de humanidade? O quanto o aumento do desempenho que ela gera nos que a consomem não se torna não só cativante, mas irresistível para aqueles que a precisam? Vemos em nossa própria sociedade como o uso de substâncias que nos ajudam a desempenhar ou atingir nossos objetivos se tornam cobiçadas: remédios como o Ozempic (semaglutida) para emagrecer, o Ritalina (metilfenidato) para se concentrar, ou mesmo antidepressivos como o Zoloft (sertralina) para nos ajudar a superar nossos próprios sentimentos “negativos” e desempenhar.
Nesse contexto, a inovação tecnológica e os implantes mecatrônicos também são um marco do gênero, e retratam como a filosofia transumanista permeia o “punklike”. Vi usa manoplas Hextec que aumentam seu desempenho em combate, permitindo-a lutar contra dezenas de usuários de Cintila sozinha. Sevika, a assistente de Silco, possui um braço esquerdo mecatrônico equipado com articulações flexíveis, garras, lâminas vorpais e um implante de Cintila que aumenta seu desempenho em combate. Contra tais oponentes, meras armas parecem brinquedos. Quem se oporia contra um exército assim?
Séries como Fullmetal Alchemist imergem mais a fundo nas minúcias dos implantes, mas Arcane não fica para trás quanto ao uso dessas tecnologias para sua construção de mundo, em especial quanto à relação com a desigualdade social. A maior parte dos usuários de implantes são os moradores da Subferia pelo mero fato de eles conviverem mais frequentemente com a violência, e sofrerem lesões corporais e mutilações mais frequentemente. Em Fullmetal Alchemist, vemos o mercado de automails prosperar na sociedade de Amestris justamente pela presença onipotente da guerra no país. Tendemos a ver implantes, tecnologias e acessórios como “ferramentas maneiras” para nossos personagens, mas elas têm um impacto abissalmente maior quando usadas para contar histórias mais profundas.
Sociedades Steampunk geralmente revolvem em torno do avanço tecnológico centrado em torno de máquinas a vapor, e um elemento essencial dessa construção de mundo é que os avanços, em especial nos períodos de intensa inovação, trazem mazelas tão intensas quanto. A presença de novas formas de relações sociais, novas tecnologias e ferramentas, novos empregos e dinâmicas de trabalho, e novas formas de exploração podem ser grandes ganchos para seu mundo e os personagens que nele habitarão. Arcane é um dos melhores exemplos disso.
E a sua história? Como poderia se beneficiar desses elementos? Conta pra gente!
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A Cidade do Sol a Vapor
Escrito e idealizado por Gleb “Crazy Sage” Igumnov e Vitaliy “Barahir” Simonov, o “The City of the Steam Sun” foi lançado em inglês e em russo e agora chega ao Brasil pela Odyssey Publicações com a tradução de Marcus Mauro, Diagramação de Alexandre Pedroso, Revisão Álvaro Ramos e Luiz Fernando “Alface” e Coordenação do projeto e Revisão final de Leandro Jardim.
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