Justiça Cega
Um conto no universo pós-apocalíptico de alta magia e tecnologia de Rifts®,
por Victor H. S. Thomaz
Tinha chovido muito nos últimos dias, deixando as ruas estreitas de Jeannestown encharcadas com lama, deixando a minha estadia nesta pocilga ainda mais sofrível.
Estamos falando de uma cidade nos limites das fronteiras da Coalizão de Estados, o tipo que é habitado por desafortunados, vândalos e D-Bees em igual medida. Suas construções variam de casas rústicas de madeira bruta tipicamente fronteiriça, até barracas de metal e lona decoradas com placas neon de brilho vacilante. Todas postas sem nenhum semblante de organização, transformando o lugar em um verdadeiro labirinto. É o tipo de povoado apressadamente fundado e que provavelmente não vai durar por muito tempo.
E lá estava eu, ansioso para deixar aquele lugar e seguir para o meu próximo destino. Quando meus olhos se depararam em uma pedinte que eu não havia visto antes, o capuz de seu manto cobria sua cabeça protegendo das intempéries, seu rosto angular esculpido por Michelangelo era parcialmente coberto por uma venda em seus olhos. Estava sentada na beira da rua com uma de suas mãos levantadas como se pedisse ajuda, mas os habitantes e viajantes seguiam por seu caminho com se ela não estivesse lá. Eu não sou um deles…
– Moça, precisa de ajuda? – Eu falei, após os meus passos no chão enlameado anunciar a minha presença para ela. Sem nem virar o rosto em minha direção, a pedinte cega respondeu. – Sim. Eu preciso.
Antes que eu perguntasse como eu poderia ajudar, ela continuou. – Preciso encontrar um velho conhecido. Eu soube que ele veio para Jeannestown recentemente.
Minha mente aflorou com curiosidade, então eu não resisti em perguntar, – E quem seria esta pessoa? Eu conheço e reconheço muita…
– Loreth Morgan. – Com uma resposta seca, ela me impediu de falar por mais tempo do que era conveniente sobre minhas habilidades. Mas para minha sorte eu reconhecia este nome.
– Está falando de um sujeito trajando uma armadura de placas enegrecida, capacete em forma de crânio com um par de chifres?
– Ele mesmo! – Ela se levantava após dar a sua resposta.
– Veio pra cá há três dias atrás, desde então ele passa quase o dia inteiro no bar do Besouro Furioso. – Eu respondi a mulher cega.
Ela estendeu a sua mão direita para mim. – Por favor, me leve até lá.
Sua mão tinha a delicadeza de uma donzela, mas era parcialmente coberta por uma luva de couro que cobria quase tudo, exceto os dedos. O tipo que um motoqueiro dos ‘burbs’ ou um soldado usaria. Eu ainda assim, a peguei como um cavalheiro.
– Alguém como ele é problema, sério. Eu me pergunto que tipo de assunto você teria? – Perguntei uma vez que a curiosidade se transformou em preocupação.
– Guarde suas perguntas para si.
Ela estava longe de ser a pessoa mais mal educada que eu já vi nesta cidade. Apesar disto, eu queria que a sua voz igualmente doce e poderosa fosse acompanhada de um pouco mais de tato social. Mas um bom samaritano como eu não pode resistir a tentação de ajudar uma dama cega à alcançar o seu destino.
. . .
O bar do Besouro Furioso se localizava no ponto central do povoado, logo em frente ao mais próximo que poderia ser chamado de praça. Muito bem destacado por ser a única construção com mais de um andar em milhas e ter uma placa neon que funcionava, em forma da criatura que dava nome ao bar. Abaixo, uma placa de madeira ao lado da entrada com APENAS HUMANOS escrita em tinta preta.
Lá dentro, o cheiro de mágoa e bebida barata permeava o recinto, com mesas postas aleatoriamente em todo canto, cheio de clientes em diferentes estados de embriaguez, e com a cacofonia de um bafafá infernal como música. Eu imediatamente notei, não que isso fosse difícil, a presença do homem de armadura negra, sentando em frente ao balcão, levantando a sua 5ª caneca de cerveja seguida e contando causos e piadas de péssimo gosto. Ele tinha cabelos loiros despenteados e barba por fazer. Feições plenamente visíveis, já que seu capacete estava em cima do balcão, ao lado das outras quatro canecas vazias.
– É ele. – Eu sussurrei, sutilmente guiando a mão da dama na direção do sujeito.
– Obrigada. Eu assumo a partir daqui, fique seguro. – Ela soltou a minha mão, e começou a se dirigir sem a minha ajuda pela multidão de clientes, sem se esbarrar em nenhum deles.
Seja lá o que estava prestes a acontecer ali, eu precisava ver com os meus próprios olhos! Então eu me posicionei em um canto pouco movimentado, com visão privilegiada do salão e do balcão. Ela, se movimentando com sutileza, conseguiu chegar no centro do salão, a uns cinco passos do homem de armadura.
– Loreth?!
Ele nem se deu ao trabalho de olhar para que chamou pelo seu nome, e simplesmente respondeu com a 6ª caneca de cerveja levantada. – Eu mesmo!
– Loreth Morgan. Por crimes de guerra, contra a humanidade e contra a vida durante o Cerco de Tolkeen. Eu vim lhe trazer a justiça e sua devida punição em nome de Lorde Coake. Não resista!
O bafafá se transformou em silêncio subitamente, todos os clientes agora estavam de olho na mulher cega e no cavaleiro negro. Quem tinha noção do que estava por vir estava se afastando, abrindo alas entre os dois, e os mais medrosos, deixando o bar.
O homem de armadura, com um riso preso em seus pulmões, virou a cabeça em direção da mulher. – Eu sabia que em algum momento os seus cachorrinhos iriam me alcançar. Eu só não imaginava que… – Ele a analisa da cabeça aos pés com o olhar. – Mandariam uma cadela suja e cega até mim! – Loreth solta um gargalhar descontrolado.
Com um único dedo, a mulher desata o nó do seu manto, deixando ele cair no chão. Revelando a armadura reluzente e cheia de inscrições mágicas brilhantes que o manto ocultava. Entretanto, ela não carregava nenhuma arma visível consigo.
– Sua última chance! – Ela exclama. – Renda-se e aceite as consequências de seus atos. E eu lhe darei misericórdia!
Com os últimos resquícios de risada, o homem muda o tom. – Um Cavaleiro Místico não pede misericórdia… – Diz ele, enquanto tirava a espada que ele portava em sua bainha de couro negro. – Nem tampouco oferece!
Ao mesmo tempo, a dama cega alcançava com a mão, uma bainha que não existia… E num súbito flash! Uma espada imaterial, feita de pura energia espiritual, moldada pelo foco e disciplina mental estava em sua mão! Eu não pude acreditar que era uma Cyber-Cavaleira que eu tinha guiado até esta espelunca!
Continua… Na Parte 2!